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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

FLAG, O CÃO DE UMBERTO D

 

No seu livro “Amados Cães” (edição Oficina do Livro, 2007), José Jorge Letria dá voz ao pequeno canídeo de Umberto D: «Eu sou um rafeiro e chamo-me Flag, mas insisto em que me recordem sempre como o cão de Umberto D, aquele que nunca aceitou que lhe impusessem a separação do seu dono, por maior que fosse a pressão desumana de uma senhoria cruel. Confesso que vi muita gente a chorar quando o filme chegou às salas de cinema. E é natural que isso tenha acontecido, já que se estava em presença de um drama simples e tocante, que coloca em cena temas como a velhice e a solidão. Nem eu nem o actor que desempenhou o papel de Umberto D éramos actores profissionais, mas não nos faltou sensibilidade para mostrarmos de forma comovente aquilo que De Sica queria que os espactadores vissem. E foi precisamente isso que eles viram através dos nossos movimentos e das emoções que conseguimos exteriorizar. Quem se recorda hoje de Flag, o cãozinho neo-realista que preferiu morrer a abandonar o seu dono à tragédia de uma existência sem amparo nem afecto? Por favor, não se esqueçam: o meu nome é Flag e fui o cão do Sr. Umberto D, um homem sem história que viveu comigo uma bela história de amor.»

Estreado em Itália a 20 de Janeiro de 1952 e no Cinema Império, em Lisboa, a 18 de Março de 1953, “Umberto D”, realizado logo a seguir a “Miracolo a Milano”, o maior fracasso comercial da carreira de Vittorio De Sica, permanece ainda hoje como um dos mais dramáticos e perturbadores documentos sobre a solidão humana. Filme em que o cidadão anónimo é captado, num momento da sua vida, com todo o despojamento e isenção que a arte cinematográfica jamais conseguira, “Umberto D” apresenta-nos uma sucessão de instantes que compõem a vivência plena da solidão de um homem.

Se estar só significa ensimesmar-se, então Umberto Domenico Ferrari é realmente um homem só. Mas a sua solidão pertence-lhe tão intimamente que não precisa do “inferno dos outros” para existir: é inalienável e inconsolável, voltada para os actos insignificantes e banais do quotidiano com desprendimento e ironia. Umberto é um homem anónimo a quem nada de excepcional acontece. Velho, cansado e melancólico, contempla a passagem do tempo com olhos tranquilos. Vemo-lo deitar-se, acertar o despertador, levantar-se, conversar com a criada, sair à rua, internar-se no hospital. Acompanhamos esse homem em lugares e instantes, sentimo-lo perto de nós, acariciamos o crepúsculo dessa vida insignificante, para nos rendermos à ternura e à emoção que ela desperta em nós.

Pessoalmente considero “Umberto D” o filme mais perfeito de De Sica. Mas poderá ser melhor entendido se pensarmos também em “Ladri di Biciclette”. Porque “Umberto D”, tal como este último, é a história de uma busca, a história de uma amizade que o desespero vem ensombrar, e do seu reencontro depois de um momento de pânico. A relação do velho reformado com o seu cão, é a mesma que se mostra no outro filme entre o colador de cartazes e o seu filho. Num e noutro é também um momento de desespero que a põe em causa: a bofetada do homem ao filho ecoa na tentativa de suicídio de Umberto com o seu cão. Um chora, o outro esbraceja. Ambos se afastam amedrontados. E ambos regressam numa lancinante e comovente sequência. Se “Ladri di Biciclette” assume a forma de um documento social sobre a miséria e a exploração, “Umberto D” é um documento humano, sobre outra forma de párias da sociedade. Talvez por isso, por se concentrar mais na pessoa, nos gestos, nas banalidades do quotidiano, “Umberto D” tenha resistido melhor ao tempo, e se afirme, para além de escolas e modas, como um comovente testemunho da digninade do ser humano. Uma das perturbantes e belissimas sequências do filme mostra-nos Umberto tentando pedir esmola, estendendo a mão e logo, quando alguém se prepara para lhe depositar uma moeda, virá-la como se verificasse se chovia ou não.

Tal como acima foi dito, e à semelhança de “Ladri di Biciclette”, também “Umberto D” enceta uma busca. Se no primeiro era a procura de um instrumento de trabalho, aqui trata-se de encontrar um lugar onde deixar o cão antes de se cometer o suicídio. O que nos leva a outro belissimo momento, após o longo e vão percurso: o abandono do cão no jardim junto das crianças, a fuga do animal depois da tentativa de suicídio e o esforço de Umberto para o recuperar e ganhar-lhe outra vez a confiança. Juntos de novo, contando apenas um com o outro, são deixados na rua pela câmara, como Chaplin deixava o seu personagem no final dos seus filmes.

(Post by Jota Marques)

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

"CARMEN" EM PORTUGUÊS

 
Editora: Hugin Editores, Lda
1ª edição: Junho de 1998
Capa: Graça Morais
Fotografias: Fernando Bento e Luís Machado
Dimensões: 152 X 222 X 80 mm
Nº de páginas: 160
ISBN: 972-831-071-4
Versão livre da ópera de Georges Bizet, a partir da novela de
Prosper Mérimée e do libreto de Henry Meilhac e Ludovic Halévy


Esta "Carmen" em português, nascida de um convite do maestro Giuseppe Raffa, subiu à cena 123 anos após a estreia mundial em Paris, no Teatro da Ópera Cómica, a 3 de Março de 1875, com Galli-Mariée na protagonista principal. Se grandes intérpretes como Luciano Pavarotti, Placido Domingo ou José Carreras acessibilizam as grandes árias do canto lírico através de espectáculos largamente mediatizados, é legítimo e meritório que grandes óperas como "Aida", de Verdi ou "Carmen", de Bizet, fiquem ao alcance de dezenas de milhares de pessoas na língua que falam quotidianamente. Este não é um livro de poesia, nem uma peça de teatro, nem um guião cénico. É apenas um libreto de ópera que obedece às rígidas regras canónicas que uma estrutura musical impõe. Como tal deverá ser lido e entendido, pois foi criado apenas para funcionar nesse contexto: o de pôr "Carmen" a comunicar em português com o seu público. (Os autores, Lisboa, 7 de Abril de 1998)


REQUIEM PARA CARMEN

                          Cigana
                         Carmen
                         Meu amor

                         Lábios cor de fogo
                         Seios macios e brancos
                         Ventre de gazela ardendo

                         Minha fogueira
                         Minha sede
                         Minha ilha

                         A praça do destino
                         Estava cheia
                         De ti
                         E era dia de festa

                         O céu de Sevilha
                         Tinha a cor dos teus olhos
                         Quando o sangue soube
                         Da tua morte

                         De ti
                         Vento cigano de liberdade
                         Direi que não partiste

                         De mim
                         Ó minha doce feiticeira
                         Dirão que te matei

                         Morreste
                         Mas ainda estás viva
                         E eu vivo ainda
                         Nesta paixão
                         Em que ambos vivemos
                         A nossa própria morte

(Luís Machado)
(Post by Jota Marques)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

ARGUS E ULISSES

 A história de Argus, o cão que esperou durante 20 anos o regresso do seu dono, para poder morrer. Depois de uma grande viagem acidentada não foi a sua esposa que o reconheceu, quando Ulisses voltou a Ítaca. Nem a esposa nem ninguém, pois Ulisses estava velho e irreconhecível. Apenas Argus, o seu fiel cão, soube de quem se tratava: Ulisses tinha regressado a casa!




ARGUS DIRIGINDO-SE A ULISSES

Tantas vezes te deram como morto e esquecido que eu próprio me interroguei sobre o sentido da minha existência, sempre apoucada pelos teus inimigos devido ao facto de eu ser o "Cão de Ulisses".

Mas que honra maior podia presentear a minha teimosia? Nenhuma, meu senhor.

Era a fala secreta e inaudível do instinto que me dava notícias do teu périplo e da tua ânsia de viver e de regressar à casa e à pátria, pois não havia nem morte nem esquecimento que lograsse dar-te sepultura na terra ou no mar.

E agora voltaste, meu senhor, coroado pela grandeza dos teus feitos, dezanove anos após teres partido e teres colocado no mapa terras até então ignotas.

Quando um herói regressa ao cais de onde partiu, é sempre a justiça dos homens e dos deuses que triunfa, pois que, de outro modo, não haveria retorno nem consolo para quem persistiu na espera.

Não preciso de olhos para te reconhecer. Basta-me o odor da tua pele de guerreiro e navegante para que o teu cão Argus possa dizer aos cépticos e aos detractores da tua glória: "Ulisses está de volta!"

Não nego que a tua ausência foi ensombrada por traições e paixões, que ambas fazem parte da natureza humana como o azul faz parte da magia celeste. Mas que importa isso, agora, se estás de volta e estes anos não bastaram para derrotar em mim a esperança de te ver de novo entre nós, nesta cidade que sempre amaste e que nunca deixou de te amar.

Parto em paz, porque fica cumprida a minha missão terrena. Ulisses voltou e Argus tremeu de comoção ao sabê-lo de volta. Podem agora os heróis, os deuses e os humanos celebrar este teu feito, pois ele ficará gravado no grande livro da memória dos homens, de que eu, para onde quer que vá, serei, doravante, o invencível guardião.

Argus

José Jorge Letria in "Amados Cães"
Oficina do Livro, 2007

(Post by Jota Marques)

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O'NEILL E O CÃO DO POEMA



Neste livro registam-se as histórias de alguns cães cuja memória resistiu à voragem do tempo por terem pertencido a donos que ascenderam ao patamar da fama nos domínios da literatura, da política, do cinema, da ciência ou da música. Em todas as narrativas bate, afectuoso e dedicado, um coração de cão. Como no exemplo seguinte, que abre o livro.

ALEXANDRE O'NEILL 
E O CÃO DO POEMA

 Esse era um ano como outro qualquer para viver ou para morrer. Mas o poeta estava cansado, e o seu coração também. Minguava-lhe a paciência para continuar versejando contra a morte. Tinha 62 anos e estava-se em 1986.
 O cão evadiu-se do poema que falava do cão e veio rondar-lhe a porta e farejar-lhe o desconsolo. Era um cão sem nome e de raça incerta, meio vadio, meio doméstico, metade alegria, metade tristeza. Um cão português, um pouco cabisbaixo..., um pouco melancólico, um pouco talhado para o sofrimento que não se sabe lá bem de onde vem e ao que vem.
 Alexandre olhou para o cão e sentiu pena, coisa que não gostava de sentir por ninguém. E o pior é que se deu conta de que o cão também dele se apiedara.
 Mas seria aquele o cão passageiro, o cão estrito, o cão rasteiro, o cão estafado, ululante, magro, tétrico, maldito, o cão moído de pancada que descrevera uns anos antes, num poema magoado, como se inventariasse, em ritmo de diagnóstico, a miséria de ser português de uma certa maneira, sem o tempero da esperança e com o veneno letal da resignação?
 Na verdade, só podia ser esse cão e não outro qualquer. Só podia ser o cão do poema, versejando, como se tricotasse mágoas, a sua própria história.
- E o que fazes tu aqui, ó cão ao qual ordenei, num poema antigo, que saísse depressa do poema?
- Venho despedir-me de ti, Alexandre.
- Mas porquê, vais fazer alguma viagem?
- Não, Alexandre, tu é que vais, tu é que te encontras de partida e ainda não te apercebeste disso.
- Mas partir para onde, ó cão do poema?
- Não sei, Alexandre, ninguém sabe ao certo, talvez para o Céu dos Poetas, caso exista, caso acredites nele.
- Mas eu nada tenho previsto nesse sentido.
- Pois é, ninguém tem. Se calhar o teu coração tem prazos a cumprir e nunca to disse.
- E vieste até aqui para me fazeres companhia?
- Na verdade, vim até aqui para te dizer que, presente ou ausente, serás sempre para mim, e para todos os cães como eu, o verdadeiro Alexandre, o Grande, não o da Macedónia, mas o da luz de Lisboa, doce e esquiva.
- Se eu soubesse que era para isto que vinhas, ter-te-ia dado um nome, um destino, um rosto. Assim, serás sempre lembrado como o cão que um dia bani do poema, que escorracei da minha escrita por temer que me pudessem confundir com ele. Se eu soubesse...
- Não te preocupes com isso. Eu sou o cão que saiu do poema e se tornou mensageiro e arauto da dor alheia. Os cães também servem para isso.
- Partamos então, ó cão do poema. Estou pronto. É só dares o sinal.
 O cão do poema tomou a dianteira e apontou o rumo ao poeta cansado. O coração parou de bater, mas a caminhada prosseguiu, pausada e segura, como se sempre tivesse estado programada para aquele dia e para aquela hora.
 Quando o poeta pediu para fazer uma pausa e dormitar um pouco, o cão do poema ficou de sentinela à entrada de um dos seus livros, e nem o sono ou o esquecimento o deixaram vencido, porque era um cão determinado e valente. Um cão feito com a matéria mais pura e resistente de que a poesia é feita.
 Quando Alexandre, o Poeta, acordou, o cão sem nome, o cão do poema, o cão moído de pancada, voltou a apontar-lhe o caminho, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Ainda hoje há quem diga que, em noites de luar, é possível avistar ambos, na claridade nocturna, ensinando aos versos o rumo das palavras sem dono. E sem sono.

José Jorge Letria, Oficina do Livro, 2007


(Post by Jota)