No seu livro “Amados Cães” (edição Oficina do Livro, 2007), José Jorge Letria dá voz ao pequeno canídeo de Umberto D: «Eu sou um rafeiro e chamo-me Flag, mas insisto em que me recordem sempre como o cão de Umberto D, aquele que nunca aceitou que lhe impusessem a separação do seu dono, por maior que fosse a pressão desumana de uma senhoria cruel. Confesso que vi muita gente a chorar quando o filme chegou às salas de cinema. E é natural que isso tenha acontecido, já que se estava em presença de um drama simples e tocante, que coloca em cena temas como a velhice e a solidão. Nem eu nem o actor que desempenhou o papel de Umberto D éramos actores profissionais, mas não nos faltou sensibilidade para mostrarmos de forma comovente aquilo que De Sica queria que os espactadores vissem. E foi precisamente isso que eles viram através dos nossos movimentos e das emoções que conseguimos exteriorizar. Quem se recorda hoje de Flag, o cãozinho neo-realista que preferiu morrer a abandonar o seu dono à tragédia de uma existência sem amparo nem afecto? Por favor, não se esqueçam: o meu nome é Flag e fui o cão do Sr. Umberto D, um homem sem história que viveu comigo uma bela história de amor.»
Estreado em Itália a 20 de Janeiro de 1952 e no Cinema Império, em Lisboa, a 18 de Março de 1953, “Umberto D”, realizado logo a seguir a “Miracolo a Milano”, o maior fracasso comercial da carreira de Vittorio De Sica, permanece ainda hoje como um dos mais dramáticos e perturbadores documentos sobre a solidão humana. Filme em que o cidadão anónimo é captado, num momento da sua vida, com todo o despojamento e isenção que a arte cinematográfica jamais conseguira, “Umberto D” apresenta-nos uma sucessão de instantes que compõem a vivência plena da solidão de um homem.
Se estar só significa ensimesmar-se, então Umberto Domenico Ferrari é realmente um homem só. Mas a sua solidão pertence-lhe tão intimamente que não precisa do “inferno dos outros” para existir: é inalienável e inconsolável, voltada para os actos insignificantes e banais do quotidiano com desprendimento e ironia. Umberto é um homem anónimo a quem nada de excepcional acontece. Velho, cansado e melancólico, contempla a passagem do tempo com olhos tranquilos. Vemo-lo deitar-se, acertar o despertador, levantar-se, conversar com a criada, sair à rua, internar-se no hospital. Acompanhamos esse homem em lugares e instantes, sentimo-lo perto de nós, acariciamos o crepúsculo dessa vida insignificante, para nos rendermos à ternura e à emoção que ela desperta em nós.
Pessoalmente considero “Umberto D” o filme mais perfeito de De Sica. Mas poderá ser melhor entendido se pensarmos também em “Ladri di Biciclette”. Porque “Umberto D”, tal como este último, é a história de uma busca, a história de uma amizade que o desespero vem ensombrar, e do seu reencontro depois de um momento de pânico. A relação do velho reformado com o seu cão, é a mesma que se mostra no outro filme entre o colador de cartazes e o seu filho. Num e noutro é também um momento de desespero que a põe em causa: a bofetada do homem ao filho ecoa na tentativa de suicídio de Umberto com o seu cão. Um chora, o outro esbraceja. Ambos se afastam amedrontados. E ambos regressam numa lancinante e comovente sequência. Se “Ladri di Biciclette” assume a forma de um documento social sobre a miséria e a exploração, “Umberto D” é um documento humano, sobre outra forma de párias da sociedade. Talvez por isso, por se concentrar mais na pessoa, nos gestos, nas banalidades do quotidiano, “Umberto D” tenha resistido melhor ao tempo, e se afirme, para além de escolas e modas, como um comovente testemunho da digninade do ser humano. Uma das perturbantes e belissimas sequências do filme mostra-nos Umberto tentando pedir esmola, estendendo a mão e logo, quando alguém se prepara para lhe depositar uma moeda, virá-la como se verificasse se chovia ou não.
Tal como acima foi dito, e à semelhança de “Ladri di
Biciclette”, também “Umberto D” enceta uma busca. Se no primeiro era a procura
de um instrumento de trabalho, aqui trata-se de encontrar um lugar onde deixar
o cão antes de se cometer o suicídio. O que nos leva a outro belissimo momento,
após o longo e vão percurso: o abandono do cão no jardim junto das crianças, a
fuga do animal depois da tentativa de suicídio e o esforço de Umberto para o
recuperar e ganhar-lhe outra vez a confiança. Juntos de novo, contando apenas
um com o outro, são deixados na rua pela câmara, como Chaplin deixava o seu
personagem no final dos seus filmes.
(Post by Jota Marques)
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