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O Coração das Trevas ~ Heart of Darkness
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Joseph Conrad, aliás Józef Teodor Konrad
Korzeniowski, nasce na Ucrânia em 1857, em plena autocracia dos Czars. Filho de
um casal polaco no exílio, fica órfão muito cedo. É criado e educado pelo tio,
o responsável por aquela que seria a paixão central da sua vida: o mar. Viaja
para Marselha em 1874, prestando serviço a bordo de navios mercantes franceses
antes de finalmente se juntar à tripulação de um navio inglês, no ano de 1878.
Em 1886 obtém nacionalidade britânica e o Certificado de Mestre no Serviço Mercantil
Britânico.
Oito anos mais tarde
abandona o mar para se dedicar à escrita, publicando o seu primeiro romance -
'Almayer's Folly', em 1895. Continua a escrever e a publicar até à data da sua
morte em 1924. Conrad é autor, entre outras obras, de Lord Jim (1900), Nostromo
(1904), The Secret Agent (1907), Under Western Eyes (1911), Heart of Darkness,
Coração das Trevas, (1902). É hoje considerado um dos maiores escritores de
ficção em inglês, a sua terceira língua.
Bertrand Russell que
veio a conhecê-lo pouco depois de Conrad ir para Inglaterra, tinha verdadeiro
fascínio pela sua obra, em especial por 'O Coração das Trevas'. Ganhou-lhe tal
amizade, que baptizou um dos seus filhos de 'Conrad'.
Quarto e último filme de Francis Ford Coppola nos anos 70 (a década mais rica e popular do aclamado director norte-americano), "Apocalypse Now", depois dos mega sucessos dos dois "Padrinhos" e ainda "The Conversation", pode-se comparar literàriamente à "Montanha Mágica" de Thomas Mann, no sentido da sua ousadia monumental. Digamos que é uma montanha que é preciso ousar escalar com ele. Coppola aventura-se por caminhos até então não explorados e convida o público a acompanhá-lo nessa expedição. O argumento original, escrito por George Lucas e John Milius no final dos anos 60, encontrava-se esquecido numa qualquer gaveta dos estúdios Zoetrope quando Coppola o encontra, e, juntamente com Milius, decide fazer dele uma adaptação de "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad. É uma mudança brusca em relação à situação histórica do Vietname, primeiro sinal dessa romantização que afasta sempre Coppola dos limites do real.
Por outro lado, como conciliar o enigma moral de "O Coração das Trevas" com o seu apocalíptico filme? Temos aí a grande ruptura de "Apocalypse Now", o que torna o objecto fascinante, apesar de irreconciliável. A subida do rio do capitão Willard (Martin Sheen) com a missão de executar o coronel Kurtz (Marlon Brando) que, no Cambodja, se tornou um déspota incontrolável, diverge em dois afluentes bem distintos: a introspecção de Willard em voz off, que lê o processo de Kurtz durante a subida do rio, antes de se encontrar com ele num final grandiloquente misturando literatura e filosofia, e o espectáculo assombroso que reserva cada paragem no rio, desde o coronel Kilgore (Robert Duvall) a bombardear uma aldeia ao som das Valquírias de Wagner, apenas para se regalar com um local onde surfar, até às coelhinhas sensuais que dançam para os soldados em alvoroço.
Como ligar a introspecção ao espectáculo? Este espectáculo metafísico permanece até ao final, onde a introspecção se torna espectacular: a filmagem da cabeça de Kurtz é lendária, tanto que o cineasta só decide filmar isso, com a cabeça rapada a entrar e a saír do negro, e a mão de Brando a acariciá-la. Kurtz cita "The Hollow Men", de T.S. Eliot, e remete tudo, ele, Willard, o Vietname, para a vaidade. Será que Kurtz é louco? Pouco importa, é um melancólico. Está escondido, deitado na sua enxerga; entrar no seu esconderijo é como aceder à gruta do Minotauro. Dá-se realidade a Coppola, e ele transforma-a num mito. "Apocalypse Now" é uma viagem onde a percepção oscilante parece afectada pelas drogas, mas mostra uma realidade da guerra: a confusão. Já ninguém comanda, o Exército está decapitado, a América desequilibrada. Cada coronel comporta-se como um déspota, Kurtz é apenas a sua caricatura monstruosa, um deus esculpido vivo. O Estado-Maior está em Saigão, come bem, vive de forma civil, longe da realidade da selva. É a ideia da cena, longa, logo no princípio do filme, onde Willard recebe a sua ordem de missão. Enquanto uma gravação da voz de Kurtz diz: «Não suporto mentirosos», o rosbife de vaca oferecido é enquadrado em primeiro plano. Por outro lado, no final, quando Kurtz morre com um golpe de Willard em montagem paralela com o abate de uma vaca, essa carne adquire um sabor particular.
Coppola, como em todos os seus filmes, adapta o estilo ao tema; mas, neste filme, esse hábito leva-o ao abismo. Se o tema é a confusão, como manter um mínimo de ordem? O cineasta vai longe, pois coloca-se mais ou menos conscientemente em situação de desordem, até de perigo. É preciso que a vida se conjugue com o filme, e Coppola pode anunciar no Festival de Cannes: «Não é um filme sobre a guerra do Vietname, é o próprio Vietname.» É verdade que Coppola não foi responsável pelos acontecimentos que ensombraram a rodagem (como por exemplo os tufões e outras intempéries ou o ataque cardíaco de Martin Sheen depois de substituir Harvey Keitel no principal protagonista), mas a estagnação absurda de uma rodagem que dura mais de um ano, de um filme que leva mais dois a ser montado, deve-se em parte à vontade de viver a aventura. Ele reconhece que se reviu em Kurtz, abusando do seu poder, longe de tudo. É admirável que o final seja tão lento, como se tivéssemos atingido o fundo da entropia. A desordem é tal que vamos sempre mais fundo, até ao esconderijo obscuro de Kurtz, o único local da obra onde o tempo parou.
Coppola nunca ficou satisfeito com a versão de 153 minutos,
de 1979; em 11 de Maio de 2001, com a ajuda de Walter Murch, estreia nas salas
de cinema uma montagem de 197 minutos, "Apocalypse Now Redux". O
acrescento mais importante é a sequência da plantação francesa (25 minutos) que
transforma a subida do rio numa subida no tempo. Dezoito anos depois, em Agosto
de 2019, é finalmente estreada a versão definitiva, com 183 minutos, e
intitulada "Apocalypse Now: The Final Cut". Antes de aceder aos
tempos remotos do mito com Kurtz, o barco pára numa residência de onde surgem
como fantasmas os proprietários armados, saídos da guerra da Indochina. Quando
o nevoeiro se instala, as ruínas da plantação dão a sensação de que Willard e a
tripulação voltaram atrás no tempo. E o filme pode mergulhar nesse jantar
espectral, que Francis achava buñueliano, com pessoas movidas por paixões políticas
no início dos anos 50, um reflexo do compromisso americano no Vietname quinze
anos mais tarde. Na versão original desta sequência (2001), Willard apanhava a
jovem (Aurore Clément) através do mosquiteiro, faziam amor e reencontrávamo-los
de manhã. Mas, na nova versão, a imagem de Aurore dissolve-se progressivamente
num fundido encadeado e ficamos com a silhueta desencarnada da jovem, a pairar
num fundo branco como o leite. Então, percebemos que estamos de volta ao barco,
de onde tínhamos partido.
(Post by Zé Marrana e Jota Marques )
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