Mostrar mensagens com a etiqueta Arthur Rimbaud. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Arthur Rimbaud. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A. RIMBAUD: OBRA COMPLETA

Editora: Relógio D’Água (Abril 2018)
Tradução: Miguel Serras Pereira e João Moita
Prefácio de Francisco Vale
Capa: Carlos César Vasconcelos, 
sobre foto de Étienne Carjat (1871)
Dimensões: 164 X 241 X 47 mm
Nº de páginas: 770
ISBN: 978-989-641-842-7


OS POBRES NA IGREJA

 

Confinados entre bancos de carvalho aos cantos da igreja

Aquecida pelos seus hálitos fétidos, todos os olhos

Virados para o coro de Talha dourada e para a mestria

De vinte goelas berrando cânticos piedosos

 

Aspirando a cera como aroma de pão quente

Felizes, humilhado como cães escorraçados

Os Pobres do bom Deus, seu patrão e senhor

Oferecem os seus oremus risíveis e casmurros.

 

Às mulheres, sabem bem os bancos lisos

Depois dos seis dias negros de provações!

Embalam, enrodilhando em estranhas peliças

Algo parecido com crianças que choram pela vida

 

Com os seios imundos de fora, estas sopistas

Com olhar de prece mas sem nunca rezarem

Observam um grupo de fedelhas maldosas

Pavonear-se com os seus chapéus deformados.

 

Lá fora, o frio, a fome e o pândego bêbado:

Tudo bem. Mais uma hora; depois, padecimentos sem fim!

Entretanto, à sua volta, geme, grasna, cochicha

Um grupo de velhas com enormes papos:

 

Aí estão os aterrorizados e os epilépticos

De quem ontem se fugia nas encruzilhadas:

E, esquadrinhando com o nariz antigos missais

Os cegos guiados por um cão até ao adro.

 

E todos, babando a fé mendicante e estúpida,

Recitam a Jesus a sua lamúria infinita

Que, amarelecido pelo lívido vitral, medita lá no alto

Longe dos magros pecadores e dos pérfidos barrigudos

 

Longe do cheiro a vianda e a tecidos bafientos

Farsa prostrada e sombria de gestos repugnantes

E a oração floresce e com expressões eleitas

E as misticidades adquirem entoações urgentes

 

Quando, das naves onde o sol perece, com pregas de seda

Banais e sorrisos verdes, as Damas dos bairros

Distintos – ó Jesus! –, as doentes do fígado

Mergulham os dedos amarelos e compridos na água benta.

 

(A. Rimbaud, 1871)


(Post by Jota Marques)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

UMA TEMPORADA NO INFERNO

 

Título original: “Une Saison en Enfer” (1873)
Editora: Fólio Exemplar (Agosto 2012)
Tradução de Margarida Gil Moreira
Capa: Sobre pintura de Sofia Ribeiro
Dimensões: 140 X 250 x 6 mm
Nº de páginas: 100
ISBN: 978-989-838-208-5

Quando, em Setembro de 1871, Arthur Rimbaud bateu à porta de Paul Verlaine, não imaginava a vertigem de poesia, boémia e absinto em que mergulhariam juntos. Uma coisa é certa: com o absinto e com Verlaine, a poesia de Rimbaud mudou. Há um Rimbaud pré-Verlaine, até "Le Bateau Ivre", e há o Rimbaud de que este livro é exemplo, introspectivo e existencial, subversivo na forma e na sua quase sempre esplêndida opacidade. Podemos fugir com Rimbaud, que se foi esconder no deserto africano, mas, ao lermos "Uma Temporada no Inferno", a miragem da explicação autobiográfica torna-se obsidiante: como escapar à tentação de ver na Virgem louca a silhueta de Verlaine? Como escapar a ver nos demónios, satanás, infernos de cada verso, o turbilhão de alucinações que assombrou e aterrou o ainda tão novo Rimbaud, a sua tendresse de apenas 18 anos? Este livro negro, como Rimbaud o designou numa carta para Ernest Delahaye, é agora publicado em versão bilingue. 



Une Saison en Enfer” (1873) é a mais famosa obra de Rimbaud (1854-1891), na qual exprime o drama da sua vida e da sua obra, numa verdadeira descida aos infernos. Em Adeus, o último trecho do livro resume a tragédia de alguém que quisera descobrir uma poesia nova ao cultivar as sensações, e apenas obtivera um caos de imagens. Protótipo do poeta revoltado em busca de outras paragens, recusa Deus e agarra-se à realidade humana:

«Já, o Outono?! - Mas porquê lamentar um sol eterno, se nos empenhamos na descoberta da claridade divina, - longe das pessoas que morrem com a mudança das estações?
O Outono. A nossa barca fundada nas brumas imóveis dirige-se para o porto da miséria, a enorme cidade no céu maculado de fogo e lama. Ah! os andrajos putrefactos, o pão ensopado de chuva, a bebedeira, os mil amores que me crucificaram! Então nunca mais acaba este vampiro, que reina sobre milhões de almas e de corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me com a pele remordida pela lama e pela peste, com vermes enchendo-me os cabelos e as axilas e outros ainda maiores no coração, estendido entre desconhecidos sem idade, sem sentimento... Podia ter morrido ali... Que pavorosa evocação! Abomino a miséria!
E receio o Inverno por ser a estação do conforto!
- Por vezes, vejo no céu praias sem fim cobertas de alvas nações em regozijo. Uma grande nau de ouro, por cima de mim, desfralda os seus panos multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novos idiomas. Pensei poder adquirir poderes sobrenaturais. Pois bem! Tenho de enterrar a minha imaginação e as minhas recordações! Uma bela glória de artista e de contador de histórias destruída!
Eu!, que me intitulei mago ou anjo, dispensado de qualquer moral, restituído ao chão, em demanda de um dever, e a áspera realidade para estreitar! Pacóvio!
Engano-me? Seria a caridade irmã da morte, para mim?
Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado de mentiras. Vamos.
Mas nem uma mão amiga! E onde buscaria ajuda?

💢💢💢

Sim, pelo menos a nova hora é rigorosíssima. Pois posso dizer que a vitória me foi granjeada: o ranger de dentes, o sibilar do fogo, os suspiros pestilentos atenuam-se. Todas as recordações imundas se apagam. Os meus derradeiros remorsos somem-se - invejas dos mendigos, dos malfeitores, dos amigos da morte, dos atrasados de todas as espécies.
- Ah, amaldiçoados, se eu me vingasse...!
É preciso ser-se totalmente moderno.
Nada de cânticos: há que conservar o terreno ganho. Dura noite! O sangue seco fumega sobre o meu rosto, e nada tenho atrás de mim a não ser este horrível arbusto!... O combate espiritual é tão brutal como a batalha dos homens; mas a visão da justiça só para Deus é prazer.
Não obstante, é a vigília. Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura verdadeira. E, ao raiar da aurora, munidos de uma ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas.
O que dizia eu de mãos amigas? A vantagem é que posso rir dos velhos amores enganosos, e encher de vergonha esses casais mentirosos, - eu bem vi o inferno das mulheres lá em baixo; - e ser-me-á permitido possuir a verdade num corpo e numa alma.»

(Post by Jota Marques)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

"OFÉLIA" ~ ARTHUR RIMBAUD

 

Arthur Rimbaud (1854-1891) foi um poeta francês que exerceu grande influência na poesia do século XX. Considerado um dos precursores da poesia moderna, nasceu em Charleville, França, no dia 20 de Outubro de 1854. Filho de um capitão de infantaria e de uma camponesa, teve uma educação bastante conservadora. Ainda criança começa a escrever as suas poesias, que foram reunidas em 1869, quando ele tinha apenas 15 anos. Em 1870, frequenta o Colégio de Charleville, onde faz amizade com Georges Iszambard, seu professor de retórica, que o incentiva na leitura dos poetas Rabelais, Victor Hugo e Théodore de Banville. A amizade com o professor era reprovada pela mãe. Nesse mesmo ano deu início a uma série de viagens, revelando o seu espírito aventureiro. Assim, com 16 anos apenas, viaja para Paris sem a autorização da mãe. Nessa época a França e a Prússia estavam em guerra. Rimbaud é preso mas com a intervenção do professor consegue ser libertado. De volta a Charleville vai morar na casa de uma amiga da família de Izambard. Em 1871, entre várias fugas, viaja para Paris, onde conhece o poeta Paul Verlaine, para quem havia remetido o poema “Soneto de Vogais”, que o acolhe em sua casa. É o início de uma conflituosa relação homossexual que chocou a sociedade da época.


Em 1872 Verlaine abandona mulher e filhos e vai com Rimbaud para Londres, onde iniciam uma vida boémia e desregrada. Em Abril de 1873, Rimbaud volta para a sua cidade natal, onde começa a escrever “Uma Temporada no Inferno”. Em Junho acompanha Verlaine, mais uma vez, numa viagem a Londres. Após muitas brigas, os dois separam-se e só se reencontram em Bruxelas, onde Rimbaud tenta romper a relação com Verlaine. Este chega a disparar contra o amante sob o efeito do álcool, ferindo-o na mão. Em consequência, Verlaine é condenado pela justiça da Bélgica a dois anos de prisão. De volta a Charleville, Rimbaud publica “Uma Temporada no Inferno” (1873), que reúne nove poemas em prosa. A obra foi considerada um marco da história da poesia e influenciou vários poetas modernos e muitos movimentos da contracultura do século XX. Em 1874 Rimbaud está de volta a Londres, desta vez em companhia do poeta Germain Nouveau. Nessa época publica “Iluminações”. Com apenas 20 anos, Rimbaud deixa de escrever e decide começar a trabalhar no comércio de café na Etiópia. Entra para o exército das colónias holandesas, mas em 1876 resolve desertar, e volta uma vez mais para a sua cidade natal. No ano seguinte viaja por diversas cidades. Em 1885, envolve-se com o tráfico de armas. Arthur Rimbaud vem a morrer em Marselha, França, vitimado por um cancro na perna, no dia 10 de Novembro de 1891. Tinha 37 anos.



 OFÉLIA

I.

Na onda calma e negra, entre os astros e os céus

A branca Ofélia, como um grande lírio, passa

Flutua lentamente e dorme em longos véus…

– Longe, no bosque, o caçador chamando a caça.


Mais de mil anos faz que a triste Ofélia abraça

Fantasma branco, o rio negro em que perdura

Mais de mil anos: toda noite ela repassa

À brisa a romança que em delírio murmura.

 

Beija-lhe o seio o vento e liberta em corola

Os grandes véus nas águas acalentadoras

Sobre os seus ombros o salgueiro se desola

Reclina-se o caniço à fronte sonhadora.

 

Nenúfares feridos suspiram por perto

Às vezes ela acorda, em vidoeiro ocioso

Um ninho de onde vem tremor de um vôo incerto:

– De astros dourados desce um canto misterioso.

 

II.

Morreste sim, menina que um rio carrega

Ó pálida Ofélia, tão bela como a neve!

– É que algum vento montanhês da Noruega

Contou que a liberdade é rude, mas é leve.

 

– É que um sopro, liberta a cabeleira presa

Em teu espírito estranhos sons fez nascer

E em teu coração logo ouviste a Natureza

No queixume da árvore e do anoitecer.

 

– É que a voz do mar furioso, tumulto impávido

Rasgou teu seio de menina, humano e doce

– E em manhã de Abril, certo cavalheiro pálido

Um belo e pobre louco, aos teus pés se ajoelhou.

 

E aí o céu, o amor: – Que sonho, pobre louca!

Ante eles era a neve, desmaiando à luz

Visões estrangulavam-te a fala na boca

O Infinito aterrava os teus olhos azuis!

 

III.

– E o Poeta diz que sob os raios das estrelas

Procuras toda noite as flores em delírio

E diz que viu na água, entre véus, a colhê-las

Vogar a branca Ofélia como um grande lírio.

"Ofélia", de Alexandre Cabanel

I

Sur l’onde calme et noire où dorment les étoiles

La blanche Ophélia flotte comme un grand lys

Flotte très lentement, couchée en ses longs voiles…

– On entend dans les bois lointains des hallalis.

 

Voici plus de mille ans que la triste Ophélie

Passe, fantôme blanc, sur le long fleuve noir

Voici plus de mille ans que sa douce folie

Murmure sa romance à la brise du soir.

 

Le vent baise ses seins et déploie en corolle

Ses grands voiles bercés mollement par les eaux 

Les saules frissonnants pleurent sur son épaule

Sur son grand front rêveur s’inclinent les roseaux.

 

Les nénuphars froissés soupirent autour d’elle 

Elle éveille parfois, dans un aune qui dort

Quelque nid, d’où s’échappe un petit frisson d’aile:

– Un chant mystérieux tombe des astres d’or.

 

II

O pâle Ophélia ! belle comme la neige!

Oui tu mourus, enfant, par un fleuve emporté!

C’est que les vents tombant des grand monts de Norwège

T’avaient parlé tout bas de l’âpre liberté.

 

C’est qu’un souffle, tordant ta grande chevelure

À ton esprit rêveur portait d’étranges bruits

Que ton coeur écoutait le chant de la Nature

Dans les plaintes de l’arbre et les soupirs des nuits.

 

C’est que la voix des mers folles, immense râle

Brisait ton sein d’enfant, trop humain et trop doux

C’est qu’un matin d’avril, un beau cavalier pâle

Un pauvre fou, s’assit muet à tes genoux!

 

Ciel ! Amour ! Liberté ! Quel rêve, ô pauvre Folle!

Tu te fondais à lui comme une neige au feu:

Tes grandes visions étranglaient ta parole

– Et l’Infini terrible éffara ton oeil bleu!

 

III

– Et le Poète dit qu’aux rayons des étoiles

Tu viens chercher, la nuit, les fleurs que tu cueillis

Et qu’il a vu sur l’eau, couchée en ses longs voiles

La blanche Ophélia flotter, comme un grand lys.

 

Nota: A história de Ofélia, personagem da obra Hamlet de William Shakespeare (1599-1601), foi fonte de inspiração para o poema de Arthur Rimbaud (1870). Ofélia é uma jovem da alta nobreza da Dinamarca, filha de Polônio e noiva do Príncipe Hamlet, que busca o amor e a liberdade. Abandonada pelo príncipe, enlouquece, afogando-se em desespero. No seu poema, Rimbaud ressalta e liga a mãe Natureza em harmonia universal à figura mítica de Ofélia, proporcionando uma sensação de paz e serenidade. Ofélia tem sido representada em livros, novelas, filmes, músicas, ciência e arte de diversos pintores.

(Post by Jota Marques)

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Arthur Rimbaud - Poésies


Jean-Nicolas Arthur Rimbaud
(1854 - 1891)
*

Étienne Carjat — Close-up from Arthur Rimbaud [1872] - foto de Étienne Carjat

§

Les pauvres à l'église


Parqués entre des bancs de chêne, aux coins d'église
Qu'attiédit puamment leur souffle, tous leurs yeux
Vers le choeur ruisselant d'orrie et la maîtrise
Aux vingt gueules gueulant les cantiques pieux ;

Comme un parfum de pain humant l'odeur de cire,
Heureux, humiliés comme des chiens battus,
Les Pauvres au bon Dieu, les patrons et le sire,
Tendent leurs oremus risibles et têtus.

Aux femmes, c'est bien bon de faire des bancs lisses,
Après les six jours noirs où Dieu les fait souffrir !
Elles bercent, tordus dans d'étranges pelisses,
Des espèces d'enfants qui pleurent à mourir.

Leurs seins crasseux dehors, ces mangeuses de soupe,
Une prière aux yeux et ne priant jamais,
Regardent parader mauvaisement un groupe
De gamines avec leurs chapeaux déformés.

Dehors, le froid, la faim, l'homme en ribote :
C'est bon. Encore une heure ; après, les maux sans noms !
- Cependant, alentour, geint, nasille, chuchote
Une collection de vieilles à fanons :

Ces effarés y sont et ces épileptiques
Dont on se détournait hier aux carrefours ;
Et, fringalant du nez dans des missels antiques,
Ces aveugles qu'un chien introduit dans les cours.

Et tous, bavant la foi mendiante et stupide,
Récitent la complainte infinie à Jésus
Qui rêve en haut, jauni par le vitrail livide,
Loin des maigres mauvais et des méchants pansus,

Loin des senteurs de viande et d'étoffes moisies,
Farce prostrée et sombre aux gestes repoussants ;
- Et l'oraison fleurit d'expressions choisies,
Et les mysticités prennent des tons pressants,

Quand, des nefs où périt le soleil, plis de soie
Banals, sourires verts, les Dames des quartiers
Distingués, - ô Jésus ! - les malades du foie
Font baiser leur longs doigts jaunes aux bénitiers.

Arthur Rimbaud - Poésies

(Post by Zé Marrana)