Trata-se de um dos mais importantes e relevantes livros da minha vida. Ainda tenho o exemplar que comprei aos 19 anos, em Dezembro de 1972, quando a edição da editora "Livros do Brasil - Lisboa" apareceu em Lourenço Marques. O livro custou-me 37$00 na altura e provavelmente adquiri-o na livraria da COOP ou então na Progresso, que eram aquelas onde costumava comprar mais livros. Com tradução de António Quadros, esta edição contém ainda uma introdução fundamental para a compreensão de algumas ideias explanadas por Camus, da autoria de Jean-Paul Sartre, que em 1942, quando "O Estrangeiro" foi lançado, pertencia ao vasto círculo de amigos do autor. Mais tarde, já na década de 50, a coisa esfriou um pouco por causa das ideias políticas, tendo-se Camus afastado do grupo que entretanto havia assumido posições mais radicais, muito próximas do Partido Comunista Francês.
Segundo o autor de "A Náusea", a obra-prima de Camus foi mais ou menos comentada pelo próprio autor em "O Mito de Sísifo", publicado alguns meses depois da edição de "O Estrangeiro": «O seu herói (Meursault) não era bom nem mau, nem moral nem imoral. Tais categorias não lhe convêm, faz parte de uma espécie muito singular à qual o autor reserva o nome de absurdo. Mas, sob a pena de Camus, essa palavra adquire duas significações muito diferentes: o absurdo é ao mesmo tempo um estado de facto e a consciência lúcida que certas pessoas tomam desse estado. E esse estado de facto é nada menos do que a relação do homem com o mundo.» A rotina diária que a esmagadora maioria das pessoas tem nas suas vidas cria um mundo subitamente privado de ilusões, onde o homem se sente perdido, se sente um estrangeiro.
E Sartre continua: «O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem abdicar nenhuma das suas certezas, sem dia seguinte, sem esperança e sem ilusões. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o. Tudo é permitido, visto que Deus não existe e visto que se morre. (...) "O Estrangeiro" não é um livro que explica: o homem absurdo não explica, descreve; não é também um livro que prove. Camus sòmente propõe e não se inquieta com justificar o que, por princípio, é injustificável.»
Os primeiros parágrafos de
"O Estrangeiro" são das frases mais citadas em toda a literatura
universal. São palavras ditas por Meursault, que aos olhos e ao pensamento dos
leitores identificam de imediato o tipo de personagem: «Hoje, a mãe morreu. Ou
talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe
falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada.
Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta
quilómetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde.
Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois
dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar.
Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe:
"A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter
dito estas palavras. A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é
que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando
me vir de luto. Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois
do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se
de um ar mais oficial.»
A 2ª mulher, Francine Faure, com quem Camus se casa em Lyon, em 1940 |
Estas poucas frases, logo na abertura de um romance, possuem uma força tremenda e inolvidável. Entram de assalto por nós adentro, exponenciando a vontade de continuar rapidamente a leitura (ao contrário do que se costuma dizer, "O Estrangeiro" é um livro muito acessível, fácil e rápido de se ler). Foi o que me aconteceu naquele longínquo ano de 1972. E depois de ter terminado rapidamente o livro, a vontade de continuar a ler Camus não se quedou por ali, levando-me a comprar sucessivamente todos os títulos com que me deparava nas poucas livrarias existentes na capital moçambicana: "A Peste", "A Morte Feliz", "O Avesso e o Direito", "Calígula", "A Queda", "O Homem Revoltado"... enfim, tornei-me um Camusiano compulsivo, tendo até hoje lido practicamente toda a sua obra. Mas "O Estrangeiro" mantém-se inultrapassável, e a ele voltei vezes sem conta ao longo da vida. Como há três meses atrás, quando a minha própria mãe morreu. Inesperadamente, ou talvez não, foi aquela abertura do livro que me veio de imediato ao pensamento. E o mesmo aconteceu com o meu amigo Zé Marrana, que chegou a transcrever para o Facebook essas mesmas frases, no dia da morte da sua mãe, há quatro anos atrás.
A 10 de Dezembro de 1957, Camus recebe o Prémio Nobel da Literatura em Estocolmo |
"O Estrangeiro" foi adaptado ao cinema em 1967 por Luchino Visconti, com argumento de Suso Cecchi D'Amico, Georges Conchon e do próprio Visconti, e com Marcello Mastroianni, Anna Karina e Bernard Blier como principais actores. Visconti seria nomeado para o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1967, onde o filme se estreou a 6 de Setembro, Mastroianni teria também uma nomeação para a Sociedade Nacional de Críticos dos EUA em 1968, e o próprio filme seria nomeado para o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro de 1968. Devido a complicados direitos autorais pelo facto da filha de Camus, Catherine, não ter gostado do filme, o mesmo nunca tinha sido transmitido até agora em televisão ou editado em DVD. Mas felizmente tais impedimentos foram ultrapassados e o filme conheceu finalmente a sua edição em DVD e BLU-RAY em 2022. Visconti faz uma adaptação fiel ao livro, incluindo frases em off dele retiradas. De qualquer modo é dos tais casos em que nada substitui a leitura, mesmo quando se trata de um grande realizador a dar vida à obra no cinema.
O acidente mortal de Villeblevin a 4 de Janeiro de 1960, durante a viagem de Lourmarin a Paris |
A tradução de António Quadros é única... esta Obra Prima está no Top 10 dos Livros da minha vida...
ResponderEliminarVoltei a lê-lo há dias. De uma assentada! É o que esta coisa dos blogues tem de bom, faz-nos regressar ao passado; e eu tenho um carinho especial por livros antigos, com as páginas já envelhecidas pelo passar dos anos. Ah! E claro, as traduções do antigamente, sem essas merdas dos "acordos" ortográficos e quejandos.
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