quarta-feira, 26 de outubro de 2022

ARGUS E ULISSES

 A história de Argus, o cão que esperou durante 20 anos o regresso do seu dono, para poder morrer. Depois de uma grande viagem acidentada não foi a sua esposa que o reconheceu, quando Ulisses voltou a Ítaca. Nem a esposa nem ninguém, pois Ulisses estava velho e irreconhecível. Apenas Argus, o seu fiel cão, soube de quem se tratava: Ulisses tinha regressado a casa!




ARGUS DIRIGINDO-SE A ULISSES

Tantas vezes te deram como morto e esquecido que eu próprio me interroguei sobre o sentido da minha existência, sempre apoucada pelos teus inimigos devido ao facto de eu ser o "Cão de Ulisses".

Mas que honra maior podia presentear a minha teimosia? Nenhuma, meu senhor.

Era a fala secreta e inaudível do instinto que me dava notícias do teu périplo e da tua ânsia de viver e de regressar à casa e à pátria, pois não havia nem morte nem esquecimento que lograsse dar-te sepultura na terra ou no mar.

E agora voltaste, meu senhor, coroado pela grandeza dos teus feitos, dezanove anos após teres partido e teres colocado no mapa terras até então ignotas.

Quando um herói regressa ao cais de onde partiu, é sempre a justiça dos homens e dos deuses que triunfa, pois que, de outro modo, não haveria retorno nem consolo para quem persistiu na espera.

Não preciso de olhos para te reconhecer. Basta-me o odor da tua pele de guerreiro e navegante para que o teu cão Argus possa dizer aos cépticos e aos detractores da tua glória: "Ulisses está de volta!"

Não nego que a tua ausência foi ensombrada por traições e paixões, que ambas fazem parte da natureza humana como o azul faz parte da magia celeste. Mas que importa isso, agora, se estás de volta e estes anos não bastaram para derrotar em mim a esperança de te ver de novo entre nós, nesta cidade que sempre amaste e que nunca deixou de te amar.

Parto em paz, porque fica cumprida a minha missão terrena. Ulisses voltou e Argus tremeu de comoção ao sabê-lo de volta. Podem agora os heróis, os deuses e os humanos celebrar este teu feito, pois ele ficará gravado no grande livro da memória dos homens, de que eu, para onde quer que vá, serei, doravante, o invencível guardião.

Argus

José Jorge Letria in "Amados Cães"
Oficina do Livro, 2007

(Post by Jota Marques)

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