quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O'NEILL E O CÃO DO POEMA



Neste livro registam-se as histórias de alguns cães cuja memória resistiu à voragem do tempo por terem pertencido a donos que ascenderam ao patamar da fama nos domínios da literatura, da política, do cinema, da ciência ou da música. Em todas as narrativas bate, afectuoso e dedicado, um coração de cão. Como no exemplo seguinte, que abre o livro.

ALEXANDRE O'NEILL 
E O CÃO DO POEMA

 Esse era um ano como outro qualquer para viver ou para morrer. Mas o poeta estava cansado, e o seu coração também. Minguava-lhe a paciência para continuar versejando contra a morte. Tinha 62 anos e estava-se em 1986.
 O cão evadiu-se do poema que falava do cão e veio rondar-lhe a porta e farejar-lhe o desconsolo. Era um cão sem nome e de raça incerta, meio vadio, meio doméstico, metade alegria, metade tristeza. Um cão português, um pouco cabisbaixo..., um pouco melancólico, um pouco talhado para o sofrimento que não se sabe lá bem de onde vem e ao que vem.
 Alexandre olhou para o cão e sentiu pena, coisa que não gostava de sentir por ninguém. E o pior é que se deu conta de que o cão também dele se apiedara.
 Mas seria aquele o cão passageiro, o cão estrito, o cão rasteiro, o cão estafado, ululante, magro, tétrico, maldito, o cão moído de pancada que descrevera uns anos antes, num poema magoado, como se inventariasse, em ritmo de diagnóstico, a miséria de ser português de uma certa maneira, sem o tempero da esperança e com o veneno letal da resignação?
 Na verdade, só podia ser esse cão e não outro qualquer. Só podia ser o cão do poema, versejando, como se tricotasse mágoas, a sua própria história.
- E o que fazes tu aqui, ó cão ao qual ordenei, num poema antigo, que saísse depressa do poema?
- Venho despedir-me de ti, Alexandre.
- Mas porquê, vais fazer alguma viagem?
- Não, Alexandre, tu é que vais, tu é que te encontras de partida e ainda não te apercebeste disso.
- Mas partir para onde, ó cão do poema?
- Não sei, Alexandre, ninguém sabe ao certo, talvez para o Céu dos Poetas, caso exista, caso acredites nele.
- Mas eu nada tenho previsto nesse sentido.
- Pois é, ninguém tem. Se calhar o teu coração tem prazos a cumprir e nunca to disse.
- E vieste até aqui para me fazeres companhia?
- Na verdade, vim até aqui para te dizer que, presente ou ausente, serás sempre para mim, e para todos os cães como eu, o verdadeiro Alexandre, o Grande, não o da Macedónia, mas o da luz de Lisboa, doce e esquiva.
- Se eu soubesse que era para isto que vinhas, ter-te-ia dado um nome, um destino, um rosto. Assim, serás sempre lembrado como o cão que um dia bani do poema, que escorracei da minha escrita por temer que me pudessem confundir com ele. Se eu soubesse...
- Não te preocupes com isso. Eu sou o cão que saiu do poema e se tornou mensageiro e arauto da dor alheia. Os cães também servem para isso.
- Partamos então, ó cão do poema. Estou pronto. É só dares o sinal.
 O cão do poema tomou a dianteira e apontou o rumo ao poeta cansado. O coração parou de bater, mas a caminhada prosseguiu, pausada e segura, como se sempre tivesse estado programada para aquele dia e para aquela hora.
 Quando o poeta pediu para fazer uma pausa e dormitar um pouco, o cão do poema ficou de sentinela à entrada de um dos seus livros, e nem o sono ou o esquecimento o deixaram vencido, porque era um cão determinado e valente. Um cão feito com a matéria mais pura e resistente de que a poesia é feita.
 Quando Alexandre, o Poeta, acordou, o cão sem nome, o cão do poema, o cão moído de pancada, voltou a apontar-lhe o caminho, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Ainda hoje há quem diga que, em noites de luar, é possível avistar ambos, na claridade nocturna, ensinando aos versos o rumo das palavras sem dono. E sem sono.

José Jorge Letria, Oficina do Livro, 2007


(Post by Jota)

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