quinta-feira, 30 de março de 2023
terça-feira, 21 de março de 2023
PENSATEMPOS
A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.
A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos “ricos”.
Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de
outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos
endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na
obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura.
Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na
cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a
criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.
O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.
As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para
serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem
passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo
alheias cobiças. Por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos
não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam. O
fausto das residências não os torna imunes. Pobres dos nossos riquinhos!
São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam de ser sustentadas com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.
Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua
própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros,
distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros,
assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos.
Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o
mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o
respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem passear-se nos
mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma tradução de uma
mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma falsificação, uma
imitação apressada.
A luta de libertação nacional guiou-se por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse relvado chamado "a luta pelo progresso"? Os novos-ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país. São nacionais mas só na aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde que esses outros lhes agitem com suficientes atractivos acabarão vendendo o pouco que nos resta.
Alguns dos nossos endinheirados não se afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode ir às compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos endinheirados dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem crianças que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação. Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza.
Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país. Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia. Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem. Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para realizar esse suicídio histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro nesse afundamento.
(Mia Couto in Jornal “Savana”. Dezembro 2002)
domingo, 19 de março de 2023
ESTES DIFÍCEIS AMORES
Dimensões: 154 X 232 X 14 mm
Nº de páginas: 270
ISBN: 978-972-202-302-3
Júlio Machado Vaz nasceu no Porto, a 16 de Outubro de
1949. Médico psiquiatra, professor universitário e também escritor,
colabora há várias décadas com a imprensa, a rádio e a televisão. Filho do
professor universitário Júlio Machado de Sousa Vaz e da cantora Maria Clara, é
bisneto de Bernardino Machado. Doutorou-se em Psicologia Médica e foi professor
auxiliar do Departamento de Ciências do Comportamento do Instituto de Ciências
Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, onde foi regente da cadeira
de Antropologia Médica, e ainda professor do Mestrado de Sexologia da
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. É vice-presidente da
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. A 30 de Janeiro de 2006 foi feito
Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Tem uma dúzia de livros publicados,
destacando-se “O Sexo dos Anjos” (1991), “Domingos, Sábados e Outros Dias”
(1993), “Estes Difíceis Amores” (2002), “O Amor é…” (2007) ou “À Escuta dos
Amantes” (2019). Na rádio, marcou gerações com “O Sexo dos Anjos”; e, na
televisão, ninguém esquece as “Sexualidades”, mantendo-se actualmente (Maio de
2009) na Antena 1 (RDP) com “O Amor é…” (com a jornalista Inês Menezes) de segunda
a sexta e, aos domingos de manhã, em emissão alargada.
quarta-feira, 15 de março de 2023
O MONTE DOS VENDAVAIS
Emily Brontë (1818-1848) |
a dele e a minha são iguais»
“Wuthering Heights” (“O Monte dos Vendavais”, na sua tradução
para português) é uma das obras mais célebres e mais lidas da literatura
inglesa. Único romance da novelista e poetisa Emily Brontë, o livro foi escrito
entre Outubro de 1845 e Junho de 1846, tendo sido editado apenas na segunda
metade de 1847, após o lançamento de “Jane Eyre”, da sua irmã, Charlotte
Brontë. Ao contrário deste último, que se transformou logo de imediato num
enorme sucesso, “Wuthering Heights” foi alvo de duras críticas, especialmente
devidas à crueldade vinculada pela personagem de Heathcliff. Mas, ao longo dos
anos (o tempo, esse eterno juiz, a impor uma vez mais o seu sábio veredicto),
“Wuthering Heights” foi-se tornando extremamente popular, sendo alvo das mais
variadas formas artísticas de adaptação: no cinema, na televisão e na rádio; um
musical, um ballet, 3 óperas, uma canção de grande sucesso mundial (de Kate
Bush, em 1978) e até um jogo de personagens.
Em 1850, dois anos depois da morte da irmã, Charlotte Brontë
publicou uma nova edição, onde não só corrigiu erros de impressão da edição
original, como também reorganizou os parágrafos, alterando de igual modo a
pontuação e, por vezes, o próprio texto. A maioria das edições modernas segue
este texto “melhorado” de Charlotte. Aconselha-se no entanto a edição
portuguesa da Leya-Gailivro (Novembro de 2010), apesar da capa pouco inspirada,
em virtude de o texto ser essencialmente o mesmo da edição original, embora se
tenham corrigido os inúmeros erros da muito pouco cuidada primeira edição. Nesta
edição também se inclui o prefácio de Charlotte Brontë à edição de 1850.
Ler “O Monte dos Vendavais” é uma experiência inesquecível,
uma viagem apaixonante ao mundo rural (condado de Yorkshire) da Inglaterra dos
finais do século XVIII que serve de cenário à paixão, tão bela quanto trágica,
entre Heathcliff e Cathy Earnshaw. Uma história de amor, de obsessão e vingança,
que contamina tudo em seu redor, por causa da sua força tempestuosa e quase
demoníaca, mas que perdura para além da morte. A estação de televisão britânica
UKTV Drama organizou em tempos um estudo sobre a popularidade da literatura
inglesa. Numa lista de vinte títulos, escolhidos por cerca de dois mil
leitores, “Wuthering Heights” foi considerada a maior história de amor de todos
os tempos (com “Orgulho e Preconceito” de Jane Austen em segundo lugar; e,
estranhamente, “Romeu e Julieta” de William Shakespeare em terceiro). Adoptado
em criança pelo patriarca da família Earnshaw, o senhor do Monte dos Vendavais,
Heathcliff (resgatado da miséria numa rua de Liverpool) é ostracizado por Hindley, o filho legítimo, e levado a acreditar
que Catherine, a sua irmã de circunstância, não corresponde à intensidade dos seus sentimentos.
Abandona assim o Monte dos Vendavais para regressar anos mais tarde disposto a
levar a cabo a mais tenebrosa vingança. Magistral na construção da trama
narrativa, na singularidade e força das personagens, na grandeza poética da sua
visão, nodoso e agreste como a raiz da urze que cobre as charnecas de
Yorkshire, “O Monte dos Vendavais” reveste-se da intemporalidade inerente à
grande literatura. Como em todas as épocas, as pessoas e a vida podem ser cruéis e as coisas nem sempre
acabam como seria legítimo desejar. Aliás, o nosso percurso nesta etapa transitória que chamamos vida, não é mais do que o somatório das decisões que vamos tomando a cada instante. Um livro maravilhoso de paixão e ódio amoroso, que pela sua força descritiva se tornou um clássico universal.
Emily Brontë (1818-1848) era uma personalidade fascinante. É
o mínimo que se pode dizer de uma jovem mulher que, sem instrução formal e sem
experiência de vida, conseguiu escrever um dos romances mais estudados da
literatura inglesa. Viveu com as suas duas irmãs, Charlotte e Anne, que
escreveram sob o apelido de Bell (Ellis no caso de Emily). Filhas de um pastor
anglicano de origem irlandesa, Patrick Brontë, cresceram numa região desolada,
num ambiente de perfeita união com a natureza. “Wuthering Heights” é a obra de
uma jovem escritora (tinha 28 anos quando acabou de escrever o livro, vindo a
falecer de tuberculose apenas dois anos depois, a 19 de Dezembro de 1848), de
carácter solitário e sensível, que procurou no silêncio da natureza as
correspondências vibrantes da sua imaginação. O resultado foi esta obra-prima
da literatura mundial.
Das inúmeras adaptações ao cinema, apenas vi quatro: as
versões de 1939, 1954, 1970 e 1992. Se o primeiro, filme de William Wyler, é porventura o mais
conhecido (com Laurence Olivier e Merle Oberon nos papeis principais), e o segundo, de Buñuel, o mais cinemático, a versão de Kosminsky (1992) é
aquela que mais se aproxima do romance original, e onde temos direito a uma
portentosa interpretação de Ralph Fiennes, bem como à excelente música assinada
por Ryuichi Sakamoto. É, de longe, a minha versão favorita, se bem que goste
muito da intérprete inglesa (Anna Calder-Marshall) da versão de 1970 (onde se
pode ver também um Timothy Dalton de 26 anos, no seu segundo papel no cinema).
Aqui chegado, apetece-me perguntar: que nível atingiria esta versão se a
escolha tivesse recaído em Oliver Reed, o grande actor inglês, que por esta
altura se encontrava no seu período de ouro? Julgo que não haveria ninguém mais
indicado para interpretar a personagem apaixonada e violenta de Heathcliff.
Oliver Reed tinha todos os predicados para nos ter podido brindar com uma
interpretação histórica. Mas isso, infelizmente, não aconteceu. Por isso, a
ideia com que se fica, sobretudo para os amantes incondicionais do romance original - onde eu
me incluo - é que ainda está por fazer a versão definitiva de “Wuthering
Heights” que consiga transpor para o grande ecrã toda a força do romance. Por
isso, uma sugestão: vejam os filmes por mera curiosidade, mas, sobretudo, leiam
o livro, porque será este que perdurará para sempre nas vossas memórias.
terça-feira, 14 de março de 2023
O HOMEM À IMAGEM DO DIABO
Coordenação e revisão: Raul Paulo
Capa e paginação: Marta Oliveira
Imagem da capa: Man in a Black Suit with a Red Cloth
Dimensões: 147 X 210 X 18 mm
Nº de páginas: 260
ISBN: 978-989-970-222-6
«Não sou um escritor que guia táxis mas, pelo contrário, sou um motorista de táxi que escreve livros! Quero deixar bem claro: se neste pequeno volume, com pretensões de livro, falo muitas vezes de mim não é para me exibir (pôr-me em bicos de pés) nem me armar em carapau de corrida; mas para divulgar acontecimentos que, se foram do domínio público, no passado, caíram no esquecimento e hoje ninguém os conhece. Acho que se eles fazem parte da história popular tem que se falar deles. Não se pode apagar a história nem adulterá-la. Uma coisa é certa: eu nunca fui, não sou e nunca serei um poeta, muito menos um escritor, por falta de vocabulário e retórica literária. Apenas escrevo porque gosto de o fazer e de cá deixar alguma coisa, do pouco que sei, no campo erudito mas, do muito que sei, em matéria de vivência real, no que toca a cultura popular. Aí, a minha escola foi outra e, de certeza, muito superior à da maioria dos intelectuais. Sei muita coisa que não se encontra incluída nos manuais escolares, nem nas enciclopédias.»
sábado, 4 de março de 2023
Há palavras
que nos beijam
como se
tivessem boca.
Palavras de
amor, de esperança,
de imenso
amor, de esperança louca.
Palavras
nuas que beijam
quando a
noite perde o rosto.
Palavras que
se recusam
aos muros do
teu desgosto.
De repente
coloridas
entre
palavras sem cor,
espetadas,
inesperadas
como a
poesia ou o amor.
(O nome de
quem se ama
letra a
letra revelado
no mármore
distraído
no papel
abandonado).
Palavras que
nos transportam
aonde a
noite é mais forte,
ao silêncio
dos amantes
abraçados
contra a morte.
Alexandre O’Neill
(Post by Jota Marques)