sexta-feira, 21 de outubro de 2022

TENTAREMOS PASSAR

 

Os meus dedos costumam andar loucos

sobre a tua pele

ou folheando livros

ou segurando com impaciência

os auscultadores dos telefones.

Já alguma vez reparaste nos meus dedos?

Eles vieram do fundo de um rio de prata

como a Excalibur

e um dia hão-de lá voltar manchados de sangue,

talvez já rugosos e sem harmonia

incapazes

frios

tolerantes.

Por enquanto eles abrem brechas

derrubam árvores e cavam trincheiras

constroem cercas para o amor

alisam as penas do medo

e pagam adiantado o serviço do corpo que os mantêm vivos

capazes de acusar

de perdoar

de colocar um rastilho de dinamite na boca do silêncio

de violentar qualquer noite

escorando os túneis que vão dar à insatisfação e ao inferno.

Se os meus dedos segurarem os teus

o que é que de novo acontece?

Construiremos uma casa, uma cabana, um palácio?

Repetiremos o percurso até à exaustão?

Quero acreditar que desconheço o caminho

e que a sua erva terá aos nossos pés uma nova resposta.

É aliciante pensar que chegaremos onde

ainda hoje não poderemos pensar.

Não adianta encher as mãos.

Quando há que caminhar-se muito

não convém demasiado peso.

Já basta o coração.

Ele transportará a inquietação,

carregará todas as dúvidas,

e talvez tropece na sua própria angústia

ou fique preso na armadilha.

De qualquer modo, dá-me as tuas mãos.

Aqui tens as minhas.

Tentaremos passar.

 

(Joaquim Pessoa in “125 Poemas”, 1982)

(Post by Jota Marques)

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