sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

TODOS TEMOS ANSIEDADE

 

Editora: Lua de Papel (Junho 2022)
Dimensões: 156 X 235 X 13 mm
Nº de páginas: 256
ISBN: 978-989-235-384-5

Imagine-se a passear numa rua escura e isolada. De repente, ouve alguém a aproximar-se… o coração acelera, a respiração fica mais rápida, sente as mãos frias e suadas. Já está prestes a fugir, mas é apenas uma das suas vizinhas a fazer jogging. O medo que sentiu é absolutamente natural. Durante perto de 300 mil anos, os antepassados reagiram da mesma maneira a ameaças que punham em causa a sua sobrevivência. Essa resposta aos perigos foi transmitida de geração em geração até hoje. o mesmo se passou com a ansiedade e com a depressão. Acontece que os tempos mudaram. E é notório o desajuste entre o modo como fomos programados e as exigências da vida contemporânea. Um simples exame de Matemática ou uma fila no trânsito são percebidos como uma ameaça (predadores!) e podem desencadear respostas excessivas (como ataques de pânico). Em "300 Mil Anos de Ansiedade", Gustavo Jesus explica-nos porque ainda hoje temos stress, ansiedade e depressão. Fala-nos dos factores ambientais e genéticos por detrás das perturbações psicológicas, das hormonas, do funcionamento do cérebro, da farmacologia, da actividade física e da alimentação. Assim, mais facilmente percebemos quando precisamos de pedir ajuda - ou quando é preciso ajudar alguém que nos é próximo.

Gustavo Jesus é médico psiquiatra e director clínico do PIN – Partners in Neuroscience. Concluiu o Mestrado Integrado em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde é actualmente Assistente Convidado da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia e onde iniciou o Programa Doutoral em Neurociências. Realizou a formação da especialidade de Psiquiatria entre o Hospital Miguel Bombarda e o Hospital Júlio de Matos e trabalhou posteriormente em vários hospitais da Grande Lisboa. Publicou já vários artigos e participou em livros técnicos, tendo-se também envolvido em muitas iniciativas de divulgação das neurociências, aspecto que considera de enorme importância também como forma de mitigação do estigma associado às perturbações mentais.

ÁFRICA DO SUL, 1998

Alguns dias passados no Parque Nacional Kruger, na África do Sul, a observar a vida selvagem são as férias de sonho para muitos. Ao terceiro dia da minha estadia, todas as preocupações com eventuais encontros próximos com predadores ferozes, que me tinham ocupado a mente enquanto preparava a viagem, tinham desaparecido. A estrutura e os funcionários do parque pareciam ter a situação sempre controlada e a sensação de segurança era plena. Talvez tenha sido por isso que decidi aventurarme num walking safari, um passeio apetecível em que grandes partes do trajecto são feitas a pé, de forma a assegurar o silêncio e, portanto, haver maior probabilidade de aproximação dos animais. Ver os animais selvagens de perto é o principal desejo de um turista no Parque Kruger, mas é preciso ter cuidado com o que se deseja. O referido passeio estava a correr bem: um grupo de zebras passou perto de nós, um avistamento de girafas ao longe, um antílope a passar em grande velocidade. Umas horas mais tarde, chegou o momento mais esperado: uma alcateia de leões. Reconheço que avistar os leões, mesmo que ao longe, me gerou um certo desconforto, mas o guia garantiu que estávamos a uma distância segura e que os leões não teriam interesse em interagir connosco. Repeti a pergunta quando um dos leões passou a olhar fixamente para o nosso grupo. Embora com um tom menos confiante do que da primeira vez, o guia insistiu que estava tudo bem. Uns minutos mais tarde, porém, ficou claro que não estava. Ao ver o leão aproximarse de nós, o guia tentou manter a calma e não elevar a voz enquanto repetia: «Temos de voltar para o jipe! Temos de voltar para o jipe!» Tal como todos os outros membros do grupo, comecei a correr em direcção ao carro e para longe do leão, que continuava a aproximarse a passos cada vez mais largos. A distância entre nós e o jipe ia diminuindo, mas a distância entre o leão e o grupo também. 

Eu corria mais depressa e a minha visão afunilavase segundo a segundo, à medida que pensava repetidamente: «Só temos de chegar ao carro, só temos de chegar ao carro.» Nesse momento, a voz do guia já não era baixa, estava claramente aos berros, mas eu só a ouvia ao longe, por detrás do som do meu próprio coração a bater desenfreadamente. A minha respiração estava ofegante, a boca, seca e as mãos, frias e transpiradas. Continuava a correr apressadamente, sem pensar que podia não aguentar aquele ritmo. Os músculos das minhas pernas pareciam ter uma resistência sobrehumana. Toda a minha atenção estava focada no carro e na ideia de que o leão estava cada vez mais próximo, ainda que, por essa altura, já não me atrevesse a olhar para trás para verificar. Segundos depois, vi o guia entrar para o lugar do condutor e, logo a seguir, saltei também para dentro do todooterreno. Rapidamente, todos os elementos do grupo tinham entrado e, no momento em que o leão estava a apenas alguns metros de nós e se preparava para saltar na nossa direcção, o guia arrancou numa nuvem de poeira, deixando o animal para trás. Tentei respirar fundo enquanto via o leão a ficar mais pequeno e à medida que os metros de terreno entre nós cresciam. Embora estivéssemos então em segurança, durante aquilo que me pareceu ser uma eternidade, continuei a sentir o coração a bater muito mais rápido do que era normal e a minha respiração estava muito mais ofegante e superficial do que era costume. Ao pegar na garrafa de água, percebi que as minhas mãos estavam frias, suadas e tremiam tanto que mal conseguia desenroscar a tampa. Por essa altura, concluí também que, a partir daquele momento, teria uma história interessante, embora altamente improvável, para contar.

Seria, de facto, uma história interessante... se fosse verdadeira. Mas não é. Não só nunca fui perseguido por um leão, como nunca estive no Parque Kruger ou, sequer, na África do Sul. O relato deste breve episódio fictício teve como único objetivo chamar a sua atenção para as alterações que ocorrem no nosso corpo quando estamos sujeitos a um risco iminente de morte, como teria acontecido se este ataque do leão tivesse sido verdadeiro. Porque é importante conhecer estas alterações, de forma a justificar a invenção de uma história destas? Porque as alterações físicas pelas quais passamos perante um risco iminente de morte são, em grande parte, as mesmas que nos afectam quando estamos ansiosos. Pensemos em situações do dia a dia bastante mais prováveis de acontecer do que sofrer um ataque de um leão: ter um teste de Matemática, estar à espera de uma entrevista de trabalho, ir a um primeiro encontro romântico, ser pai pela primeira vez... Numa grande diversidade de situações comuns da nossa vida, e também em momentos em que ficámos particularmente ansiosos, todos já experienciámos as sensações físicas acima descritas: palpitações, respiração superficial e ofegante, extremidades dos membros frias e suadas ou tremores. A pergunta que então se coloca é: porque é que o nosso corpo reage com as mesmas adaptações fisiológicas à antecipação de uma entrevista de trabalho e à ameaça de morte por um leão? Sabendo que “o cérebro comanda o corpo”, como é amplamente reconhecido e repetido (como se o cérebro não fizesse, ele próprio, parte do corpo...), estará ele a reagir desproporcional ou inadequadamente a acontecimentos que não representam para nós um risco de vida? Se a resposta for sim, porque é que isso acontece? E mais importante ainda: poderá isso ajudarnos a compreender por que razão todos nós temos ansiedade? Voltemos ao leão: quando um ser humano se depara com um predador (ainda que isso seja pouco frequente na nossa vida actual), o cérebro detecta um perigo de morte e desencadeia uma série de reações cujo objetivo é a sobrevivência. 

Nesse sentido, o ser humano vai reagir como qualquer outro mamífero: vai tentar manterse vivo perante as adversidades. Se o leão estiver muito perto, sobreviver implica lutar; se estiver longe, o mais prudente é fugir. Em ambos os casos, é fundamental que os órgãos e sistemas do corpo responsáveis pelas acções que resultarão, esperançosamente, na sua sobrevivência, estejam preparados para isso. Os músculos devem receber maiores quantidades de sangue, que transporta oxigénio e nutrientes (como é o caso da glicose, vulgarmente designada como “açúcares no sangue”), para poderem funcionar num período de intenso esforço, como uma fuga ou uma luta. As extremidades ficam frias e suadas para permitir o arrefecimento do corpo, uma vez que esse momento de grande actividade física resulta numa elevação significativa da temperatura corporal, podendo comprometer o seu equilíbrio. Além da actividade física, também a mental aumenta, porque durante a fuga ou luta é preciso manter a atenção (chamado “foco”) não só nos perigos, mas também no planeamento das nossas reações aos perigos. É essa a razão pela qual o cérebro deve receber o suplemento adicional de sangue (e tudo o que contém), para funcionar no seu melhor desempenho possível. Paralelamente, para que os músculos e o cérebro (e não só) possam receber a quantidade de sangue (e oxigénio e glicose) necessária para este súbito aumento de actividade, o coração tem de bater mais depressa, motivo pelo qual a nossa frequência cardíaca aumenta, dando a sensação de palpitações. 

Simultâneamente, para que esse sangue contenha uma quantidade maior de oxigénio e glicose, outras adaptações têm de ocorrer no nosso corpo: a respiração tornase mais rápida, para conseguir captar mais oxigénio do ambiente para os pulmões e, daí, para o sangue; ao mesmo tempo que o dióxido de carbono produzido pelo metabolismo (que está nesse momento acelerado) é eliminado pela via inversa. O metabolismo é outro componente que é significativamente alterado após o confronto com um predador. Isso acontece porque é preciso disponibilizar a glicose (os tais açúcares) para a circulação sanguínea, através da qual chegará aos órgãos mencionados, servindo de combustível para uma resposta de fuga ou de luta. Todas estas adaptações ocorrem num período relativamente curto de tempo, usando dois sistemas fundamentais de comunicação entre o cérebro – que detecta a ameaça através dos nossos sentidos (visão, audição, olfato) – e o resto do corpo, que, no seu conjunto, deverão construir uma resposta a essa ameaça. Esses dois sistemas de comunicação são o sistema nervoso autónomo e o sistema hormonal – e sobre eles falaremos no próximo capítulo. Mas então, o que terá isto a ver com o stress e a ansiedade? É incrível como o corpo humano (o de qualquer mamífero, aliás) se adapta tão rapidamente perante um risco iminente de morte. É natural que assim seja – e não uso a palavra “natural” por acaso: foi a seleção natural que assim o determinou. Para quem não se lembra do que aprendeu nas aulas de Ciências e de Biologia, a seleção natural é o processo, descrito por Darwin e Wallace, segundo o qual os indivíduos de qualquer espécie que possuam características que aumentem a sua sobrevivência (face ao que os pode matar, como predadores, fome ou infeções) passam mais frequentemente os genes que determinam essas características à sua descendência. Geração após geração, os seres humanos com atributos que lhes permitiram sobreviver aos predadores, à fome, às infecções – as chamadas pressões evolutivas – foram os que se reproduziram (porque, como todos sabemos, é preciso estar vivo para procriar). Assim, os seus genes e as características por eles determinadas passaram à geração seguinte. De forma simplista, podemos dizer que a evolução humana, ao longo de muitas gerações, determinou que fôssemos capazes de nos adaptarmos rapidamente a um risco de vida imediato.

(Post by Jota Marques)

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