«Ensina-me a dançar. Ensinas?» Anthony Quinn, na pele do inesquecível Zorba, responde a Alan Bates: «Dançar? Disseste dançar? Anda, rapaz.» Então entra a música de Mikis Theodorakis e o resto já se sabe. Dançam. Zorba ri, transborda vida. A última cena do filme "Zorba, o Grego (Alexis Zorbás)", de Michael Cacoyannis (1964), a partir da obra homónima do escritor grego Nikos Kazantzakis, é talvez uma boa porta para a sua extensa obra. Zorbás é uma das criações mais inesquecíveis da literatura - uma personagem da estatura de um Falstaff ou de um Sancho Pança. A sua idade avançada não diminuiu o entusiasmo e o deslumbramento com que acolhe tudo o que a vida lhe traz, esteja ele a trabalhar na mina, a confrontar os monges loucos de um mosteiro na montanha, a embelezar as histórias da sua vida ou a fazer amor para evitar o pecado. Zorbás conhece todas as alegrias e tristezas da vida, e através do seu exemplo, o narrador alcança uma compreensão genuína do que significa ser humano. Para seu deslumbramento e embaraço.
Mikis Theodorakis, autor da música de "Zorba, o Grego" (1964) |
Publicado primeiramente em inglês em 1952, "Vida e Andanças de Alexis Zorbás" é uma obra popular e bastante conhecida de Kazantzakis. Como outros tantos romances do autor, este foi escrito numa fase tardia da sua vida, após vários anos a viajar, a escrever, e a estudar religião e filosofia. O narrador do livro é modelado conforme o rigor intelectual de Kazantzakis, ao passo que a personagem Zorba parece ser uma personificação do élan vital encontrado na filosofia de Henri Bergson, a cujas palestras Kazantzakis assistiu em Paris. O romance é narrado por um escritor e intelectual cuja vida se cingiu aos livros e às ideias, ao invés da vida concreta. Para mergulhar numa vida de acção, decide reabrir uma mina abandonada na ilha de Creta. Zorba, um homem grande cheio de paixão e entusiasmo pela vida, encontra o narrador à espera do barco para Creta, e impulsivamente pede-lhe para partir com ele. Pressentindo que Zorba personifica a vida que procura, o narrador aceita Zorba como companheiro e capataz da mina.
Irene Papas em "Zorba, o Grego" (1964) |
São dadas as boas-vindas aos dois na ilha, sendo que Zorba prontamente desenvolve uma relação com a Madame Hortense, uma cortesã francesa envelhecida que recorda ter sido a amante de vários almirantes entre outros. Ao passo que o narrador permanece introspetivo e reservado, Zorba é tempestuoso e persegue cada tarefa e oportunidade como ocasiões para uma possível celebração. E assim, deseja possuir várias mulheres, canta, dança, luta, come e trabalha – e todas estas actividades são cometidas com o mesmo deleite e entusiasmo. Sem ilusões, acredita que tanto o homem como a mulher são animais, e que as igrejas e os governos são antros de corrupção. Recusa-se a aceitar o envelhecimento e a morte, mas continua a saborear o que de mau e bom a vida tem para oferecer. Zorba insiste que o narrador persiga a viúva da vila, que é odiada pelos habitantes pela sua beleza inacessível. Logo depois de o narrador passar uma noite com ela, o cadáver de um jovem que foi recusado pela viúva é encontrado. Apesar de Zorba lutar para a salvar, os habitantes acabam por matá-la num sacrífico ritual sexualizado. Após o narrador prometer a mão de Zorba em casamento a Madame Hortense, Zorba, com grande cortesia, aceita o enlace devido à felicidade manifestada por Hortense. Contudo, antes da cerimónia ser consumada, esta morre de pneumonia. O livro termina com a separação do narrador e de Zorba.
Anthony Quinn e Alan Bates em "Zorba, o Grego" (1964) |
O encontro real com George Zorbás, um camponês mais velho, mineiro, de grande sabedoria e com quem Kazantzakis estabeleceria uma relação de forte amizade, foi determinante para o escritor. Kazantzakis, nas suas próprias palavras, diz que não é um intelectual. Antes, «uma alma selvagem». Quem foi então aquele homem que escreveu poesia, romances, ensaios filosóficos, guiões, livros de viagens, e traduziu clássicos como "A Divina Comédia" de Dante ou o "Fausto" de Goethe? O pintor Roussetos Panayotakis descreve-o como «uma corrente elétrica». «Andava sempre com um chapéu de chuva e um livro ou jornal debaixo do braço», diz ainda, trazendo à memória a sua imagem.
Nikos Kazantzakis (1883-1957) foi o maior escritor da Grécia da primeira metade do século XX. Nasceu em Creta durante o período de revolta contra o Império Otomano. Viveu uma vida repleta, com incontáveis viagens, que alimentaram a sua escrita, aguçando o seu olhar dirigido ao Homem como igual na essência em cada canto do mundo. Todavia, talvez nada como a Grécia natal tenha alimentado as suas histórias. «Ele abria as asas por todo o mundo e usando apenas lendas locais, que normalmente diriam algo apenas para ao nativos de Creta, como o capitão Michalis ou Zorba, o Grego, conseguia enfatizar os aspetos universais, e criar um universo acessível a toda a gente, em todo o lado», afirma o escritor Nikos Chrissos. Escreveu romances, poemas, ensaios, livros de viagens e peças de teatro. Mas mais do que erudito, foi um homem de acção. Alistou-se como voluntário no Exército Grego durante a guerra dos Balcãs, viajou pela Europa e pela Ásia, empenhando-se em causas e combatendo ao lado das facções que apoiava. No seu epitáfio lê-se: «Não tenho nenhuma esperança. Não tenho medo de nada. Sou livre.»
Alan Bates e Anthony Quinn em "Zorba, o Grego" (1964) |
«No universo romancesco, nomeadamente no "Cristo Recrucificado", há um conjunto vasto de personagens-tipo que também são universais mas sem nunca deixarem de ter uma componente muito evidente de ligação à terra cretense. Aliás, Kazantzakis é primeiro que tudo cretense, e depois grego e universal», diz José António Costa Ideias: «As personagens são universais, sobretudo na tentativa de conquista da liberdade, que é tão importante para Kazantzakis, é por isso que é tão importante o aspeto colectivo. Ele dá grande relevo às massas, ao colectivo. mesmo no teatro há essa dimensão.» É autor de obras como "Cristo Recrucificado", "O Bom Demónio", "Liberdade ou Morte", "A Última Tentação de Cristo" ou "Carta a Greco", publicadas há muito em Portugal por editoras como a Portugália e a Ulisseia, sobretudo em traduções a partir do francês.
O EP português da banda-sonora do filme (edição de 1965) |
Kazantzakis aproximou-se do socialismo, mas pedia tanto a bolcheviques como a fascistas que eliminassem o seu nome dos seus livros: «É absolutamente contra a minha natureza pertencer a um gangue ou a uma multidão.» «Há nele uma tentativa em parte conseguida de síntese. Kazantzakis percorre várias linhas, várias áreas, aproxima-se de várias correntes, como o Cristianismo, mas também o Budismo, o Marxismo... Essa ânsia de conhecimento e de liberdade leva-o a contactar e até abraçar pontualmente estes ideiais», afirma Costa Ideias. «Na dimensão espiritual do autor, está em causa não tanto a "religião no sentido convencional do termo", organizada, mas "uma procura incessante pelos limites do próprio homem". Rejeitado por alguns cristãos, a relação com a Igreja foi, aliás, problemática até ao final da sua vida. Depois de recusarem que o seu corpo estivesse na capela da Arquidiocese de Atenas, Kazantzakis foi levado para Creta, onde o arcebispo celebrou a missa fúnebre. Todavia, nenhum membro do clero queria estar no enterro, por medo das reações. Acabou por fazê-lo um padre militar num funeral onde estiveram milhares de pessoas e onde até à manhã do dia seguinte a sua vida foi celebrada. Hoje em dia na Grécia está a operar-se uma recuperação e reavaliação crítica da sua obra, sobretudo no meio académica, mas também na opinião pública.»
Willem Dafoe em "A Última Tentação de Cristo" (1988) |
«Talvez pela antiguidade da sua vida e obra, pela hegemonia das literaturas inglesa, francesa, americana e latino-americana, ou mesmo pela natureza iconoclasta do seu pensamento, se possa explicar o motivo pelo qual tão pouco do trabalho de Nikos Kazantzakis tenha chegado a Portugal até agora: apenas uma edição de 1984 de "Cristo Recrucificado", o seu relato de uma encenação teatral da Paixão de Cristo numa aldeia grega da Anatólia», refere Pedro Miranda na revista "Sábado". E continua: «Não falamos afinal, apenas de um dos maiores e mais lidos autores do século XX no seu país, mas de um escritor com larga repercussão internacional, por nove vezes tido em conta pela Academia Sueca para vencer o Nobel da Literatura e perdendo o último, de 1957, ano da sua morte, para Albert Camus por apenas um voto. Camus diria, mais tarde, que Kazantzakis merecia a distinção "100 vezes mais" do que ele próprio. Depois da sua morte, contribuíram igualmente para a difusão do seu nome além-fronteiras duas grandes obras cinematográficas baseadas no seu trabalho: "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese (1988) com Willem Dafoe no papel de Jesus; e "Zorba, o Grego", uma produção grega de 1964, que arrecadou 3 Óscares - melhor actriz secundária para Lila Kedrova, Fotografia e Direcção Artística -, tendo obtido ainda mais 4 nomeações - Filme, Realizador, Actor (Anthony Quinn) e Argumento-adaptado.
É na obra que agora nos
chega, pela primeira vez em português , que se baseia este último filme:
"Vidas e Andanças de Alexis Zorbás", geralmente tido como um dos
melhores livros de Kazantzakis. O que o filme capta na perfeição é a
caracterização de uma personagem absolutamente sui generis, eternizada no écran
por Anthony Quinn, num desempenho tido como o mais memorável da sua carreira:
um velho carismático e hedonista que ama a vida e a liberdade, e que entra na
vida do narrador simplesmente pedindo que o leve com ele na sua viagem, o que,
contra a sua natureza recatada, acaba por fazer. O que escapa à adaptação, no
entanto, é a dimensão espiritual do embate entre a personagem do narrador, qual
D. Quixote irremediàvelmente idealista, romântico e perdido nos seus livros
(uma versão ficcionada do próprio Kazantzakis) e Zorbás, um Sancho Pança pragmático,
impermeável a filosofias, o que o exorta a experienciar o mundo com as mãos e
os pés, em vez de com a cabeça, uma espécie de microcosmos do eterno confronto
entre razão e emoção. De facto, ler o romance é depararmo-nos, ao virar de cada
página, com uma nova inspecção da condição humana, seja pelo prisma do desapego
de Buda, do inferno de Dante ou do rumo certo para uma Humanidade perdida entre
Deus e o Diabo.»
ISBN: 978-972-442-649-5
Nº de páginas: 384
(Post by Jota Marques)
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