quarta-feira, 9 de novembro de 2022

OS CAVALOS TAMBÉM SE ABATEM

 

Título original: "They Shoot Horses, Don't They?" (1935)
Editora: Círculo de Leitores, 1971
Tradução: Alexandre Pinheiro Torres 

Levante-se o réu!

Levantei-me. Por um momento vi de novo Glória, sentada naquele banco do cais. A bala havia justamente acabado de lhe atingir a têmpora; o sangue nem sequer começara a correr. O clarão do tiro ainda lhe iluminava o rosto. Tudo era claro como o dia. Todo o seu ser se descontraíra completamente; instalara-se completamente no conforto. O impacto da bala desviara-lhe um pouco o rosto no sentido oposto àquele em que me encontrava; assim, não me era já possível vislumbrar-lhe perfeitamente o recorte do perfil, embora, pelo que lhe podia ainda apreciar da face e dos lábios, soubesse que ela sorria. O delegado do Ministério Público não tivera razão quando afirmara ao júri que ela morrera em agonia, em total desamparo, solitária, pois junto de si havia apenas a presença do seu assassino brutal, ali, nessa noite sem estrelas, à beira do Pacífico. Ele errara, tanto quanto um ser humano pode errar! Ela não morrera em agonia. Todo o seu ser se descontraíra, se tornara confortável. Aliás, fora a primeira vez que a vira sorrir. Assim, como fora possível afirmar que morrera em agonia? E não acabara sem um apoio amigo. Porque eu era o seu melhor amigo. Era mesmo o seu único amigo. Portanto, como fora possível afirmar que expirara em perfeito desamparo? 

O AUTOR E A OBRA

Horace McCoy nasceu em Pegram, Tennessee, a 14 de Abril de 1897, vindo a falecer a 15 de Dezembro de 1955, em Beverly Hills, Califórnia. Vida curta - 58 anos - mas recheada de experiências que lhe enriqueceram o conhecimento humano e forneceram material fecundo para a sua obra literária. Filho de pais pobres, começa a trabalhar aos 12 anos como vendedor de jornais. Aos dezasseis anos deixa a escola em Nashville, tendo experimentado vários empregos: caixeiro viajante, percorrendo a Louisiana, Mississipi, Georgia, Arkansas, Tennessee e Texas; motorista de táxis em Nova Orleans e Dallas. Aqui se tornou mais tarde repórter e redactor desportivo dum jornal. Como combatente da Grande Guerra (tornou-se bombardeiro e observador aéreo) esteve 18 meses em França, onde obteve a Cruz de Guerra em Agosto de 1918, por heroísmo, por parte do governo francês. Voltaria amiúde a Paris, levado pelo seu amor ao teatro. Conhece Scott Fritzgerald e outros escritores expatriados, começando a escrever então pequenas histórias um pouco à maneira deles. Publicou algumas em revistas pulp e assim atraíu a atenção de antologistas como Edward O'Brien. Simultâneamente fundou o célebre Teatro Experimental de Dallas.

Em 1929 chega a Grande Depressão, o que obriga McCoy a percorrer a costa da Califórnia em novas ocupações: apanhador de fruta, barman, guarda-costas de um chefe político, boxeur, árbitro em concursos de dança. Esta última actividade irá mais tarde servir como tema para o seu primeiro romance, "They Shoot Horses, Don't They?", um relato da bárbara competição de resitência, a maratona da dança, em que os concorrentes dançam dias a fio até irem caindo de exaustão. O livro é publicado obscuramente na América em 1935, mas é em edição francesa que, alguns anos depois, desperta as atenções do mundo das letras: McCoy passa a ser considerado um escritor da estirpe de um Steinbeck. Tendo chegado a Hollywood em 1931, McCoy obteve alguns pequenos papéis antes de passar a escrever argumentos para o cinema (cerca de quarenta no total, incluindo "Persons in Hiding" de Louis King em 1939, "Gentleman Jim" de Raoul Walsh em 1942, "Kiss Tomorrow Goodbye" de Gordon Douglas em 1950, "The Turning Point" de William Dieterle em 1952 ou "The Lusty Men" de Nicholas Ray em 1952).

O seu segundo livro, saído em Portugal com o título "O Pão da Mentira", é a análise da corrupção duma pequena cidade, e vê a luz do dia em Inglaterra em 1937, sendo apenas editado na América dez anos depois. A vida dissoluta vivida nos EUA serve-lhe de assunto para "I Should Have Stayed at Home". Já nos fins dos anos 40 quebra um silêncio de vários anos com a publicação de "Kiss Tomorrow Goodbye", a história de um gangster e da sua luta pelo poder, que constitui um retrato cru da era de Dillinger. James Cagney vem a interpretar no écran o protagonista deste romance, num filme que ficou célebre. A obra escassa mas de impressionante vigor de Horace McCoy completa-se com "Scalpel", publicado em 1952, precisamente três anos antes da sua prematura morte, aos 58 anos, no dia 15 de Dezembro de 1955. Morreu na sua casa de Beverly Hills, de um ataque cardíaco.

O meu amigo Rato Cinéfilo, que acaba de publicar o seu livro de estreia, "Cinememórias" (que pode ser adquirido neste blogue - ver link na barra à esquerda), acedeu de boa vontade ao meu pedido para escrever um comentário ao filme "Os Cavalos Também Se Abatem", realizado por Sydney Pollack em 1969 e estreado nos EUA em 10 de Dezembro desse mesmo ano. Em território português o filme só viria a ser estreado em Lourenço Marques, no cinema Infante, a 26 de Novembro de 1971.

Rocky: «Yowza! Yowza! Yowza!»

Nos tempos obscuros da Grande Depressão, uma nova moda nacional nasceu na América – as maratonas de dança. De duração ilimitada, o objectivo último era a atribuição de prémios aos mais resistentes - valores irrisórios quando comparados com os ganhos publicitários obtidos pelos promotores de tais “espectáculos”. Esta primeira grande obra de Sydney Pollack pega numa dessas maratonas para denunciar o “american dream of life” e devolver-nos o clima de tragédia que constituía a sobrevivência durante a crise económica dos anos 30 nos EUA. Estamos num pavilhão localizado numa qualquer praia californiana, no interior do qual uma imensa pista de dança vai servir de palco às esperanças ilusórias de uma centena de pares que se preparam para resisistir estoicamente a longas semanas de sacrifício, físico e psicológico, no intuito de alcançarem os 1500 dólares anunciados pela organização.

O filme irá acompanhar em especial quatro desses pares: Gloria (Jane Fonda), uma jovem cínica e amarga, vinda de várias experiências infelizes, que à última hora tem de substituir o seu par (desclassificado por indícios de doença) por Robert (Michael Sarrazin), um jovem desconhecido que se encontrava no local por acaso e simples curiosidade; Alice (Suzannah York), uma inglesa aspirante a actriz cujo maior desejo é vencer em Hollywood e o seu companheiro Joel (Robert Fields) que partilha das mesmas aspirações; Sailor (Red Buttons), um veterano da Grande Guerra com a sua parceira Shirl (Allyn Ann McLerie); e um casal recém-casado de parcos recursos e à espera do primeiro filho – Ruby (Bonnie Bedelia) e James (Bruce Dern). A presidir à maratona está Rocky (Gig Young), um mestre de cerimónias sem escrúpulos que não hesita em usar todos os meios ao seu alcance para que o espectáculo desperte o interesse de um público voraz, à procura de desgraças superiores às suas, para assim se sentir confortado na sua miserabilidade.

Fazendo parte de uma vaga de jovens directores que se iniciaram na televisão em princípios dos anos 60, Sydney Pollack insere-se numa classe particular de cineastas cujo estilo se situa a meio-caminho entre o classicismo reinante nos grandes estúdios e um novo realismo que por vezes faz lembrar o documentário. À semelhança de um Frankenheimer ou de um Coppola, Pollack foi um dos responsáveis pela abertura de vias a toda uma geração de novos realizadores que se viriam a afirmar no decorrer das décadas de 70 e 80: Spielberg, Lucas, Scorsese ou De Palma, por exemplo. Tendo começado a sua carreira no grande écran por um thriller psicológico com Sidney Poitier e Anne Bancroft (“The Slender Thread”) em 1965, é com o filme seguinte, “This Property Is Condemned” (1966), um argumento assinado por Coppola e baseado numa peça de Tennessee Wiliams, que Pollack se revela como um cineasta bastante promissor. Foi também o início de uma grande amizade com Robert Redford, actor que participaria em mais sete dos seus filmes.

O período da Grande Depressão foi tratado de variadissimas formas no cinema, mas sempre se destacou (Chaplin à parte) o chamado filme de gangsters. Desde “Little Caesar”, em 1930, até “Bonnie & Clyde”, em 1967, os exemplos são ricos e variados. Com “They Shoot Horses, Don’t They?”, Pollack aborda esses anos como um autêntico retrato da sociedade da altura. Baseado num livro de um escritor norte-americano injustamente menosprezado, Horace McCoy, o argumento, brilhante (assinado por James Poe e Robert E. Thompson), centraliza quase toda a acção num único décor (a pista de dança), sem que isso belisque minimamente o interesse do espectador. Pelo contrário, a emoção está sempre presente, fruto de uma montagem precisa e minuciosa (assinada por Fredric Steinkamp, que a partir deste filme colaboraria muitas vezes com Pollack), nomeadamente nas diversas sequências do “derby”, onde atinge um raro virtuosismo ao conseguir integrar o espectador na dor e angústia daquela louca procissão de desesperados. De salientar ainda a utilização inteligente de flashbacks e flashforwards na construção narrativa e que ao longo do filme vão anunciando a sua conclusão trágica, onde finalmente a expressão que dá título ao filme se revela em toda a sua crueza – «They shoot horses, don’t they?»

Pollack revela aqui aquela que seria uma das suas imagens de marca – a brilhante direcção de actores. Susannah York (nomeada para o Globo de Ouro e Oscar de Actriz Secundária e vencedora do BAFTA inglês para a mesma categoria), Red Buttons (nomeado para o Globo de Ouro de Actor Secundário), Michael Sarrazin (nomeado para o BAFTA da revelação mais promissora), Bruce Dern ou Bonnie Bedelia, constroem todos eles grandes personagens que irão ficar para sempre nas nossas memórias. Mas o par de cerejas em cima do bolo são efectivamente Gig Young e Jane Fonda. Young arrebataria quer o Oscar quer o Globo de Ouro para o melhor Actor Secundário, tendo ainda sido nomeado para o correspondente BAFTA.

Jane Fonda liberta-se, com este filme, da sua imagem de boneca sexual (reforçada pelo sucesso de “Barbarella” no ano imediatamente anterior) provando, sem margens para dúvidas, que estava ali uma digna sucessora do pai Henry. Teve três nomeações para Melhor Actriz Principal, uma para os Oscars, outra para os Globos de Ouros e ainda uma terceira para o BAFTA. Perderia para Maggie Smith nos primeiros (alguém se lembra do filme “The Prime of Miss Jean Brodie” ???) e para Geneviève Bujold (“Anne of The Thousand Days”) nos segundos. Quanto ao prémio inglês, o mesmo seria ganho por Katharine Ross (“Butch Cassidy & The Sundance Kid” e “Tell Them Willie Boy Is Here”). Jane Fonda seria no entanto distinguida pelas Associações de críticos de Nova Iorque e Kansas City como a Melhor Actriz de 1969.


ALGUMAS CURIOSIDADES:

- Foi o próprio Sydney Pollack quem se encarregou de filmar alguns dos planos constantes nas corridas dos concorrentes. Para isso calçou um par de patins e misturou-se entre os pares que evoluiam à volta da pista.

- “They Shoot Horses, Don’t They?” teve 9 nomeações para os Oscars sem conter contudo a categoria de Melhor Filme: Realizador, Argumento-Adaptado, Montagem, Música, Guarda-Roupa, Direcção Artística e Cenários, Actriz Principal (Jane Fonda), Actriz Secundária (Susannah York) e Actor Secundário (Gig Young). Como acima já se disse, este foi o único Oscar conquistado pelo filme.

- A banda sonora está recheada de canções dos anos 30, incluindo algumas escritas propositadamente para o filme por John Green, conferindo assim uma atmosfera de autenticidade. Os temas incluem "Easy Come, Easy Go," "I Cover the Waterfront," "Out of Nowhere", "Coquette", "Brother, Can You Spare a Dime", The Best Things in Life Are Free", "Body and Soul", entre muitas outras.



(Post by Jota Marques)

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