Cheguei ao livro vindo do filme. O que no meu caso não é de admirar, sou mais um cinéfilo compulsivo do que um leitor assíduo. Mas aqui, em particular, estamos na presença da beleza, quer a sintamos nas imagens do Visconti ou nas páginas do Thomas Mann. As duas fontes completam-se e o que resulta desse ajuste é algo de inesquecível. Em "Morte em Veneza" assistimos ao encontro entre dois seres e os seus respectivos mundos, a partir dos olhares que lançam um sobre o outro. Visconti, no apogeu da sua carreira artística, inventa uma nova linguagem, em que a comunicação se estabelece para lá das palavras. Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor já contestado pelo seu habitual público e pelos seus discípulos, tão certo das suas verdades, de uma vida onde os conceitos se encontram meticulosamente arrumados, onde se propagandeia uma visão idealista da beleza, encontra o seu anjo da morte, Tadzio (Björn Andresen), num hotel luxuoso do Lido de Veneza, habitado por uma despreocupada grande burguesia. Confrontado com uma beleza que o perturba, com uma juventude que tenta desesperadamente agarrar e reconquistar, Aschenbach entrará em guerra consigo próprio, iniciando assim a sua lenta mas inexorável agonia. Com Tadzio surge a certeza de que nenhuma verdade é eterna, de que nenhum momento é tranquilo, de que nenhum passado, ainda que feliz, é intocável. Conforme o próprio Visconti refere, «Tadzio resume o que constitui um pólo da vida de Aschenbach, um pólo que, representando a vida – como alternativa e antítese do universo rigidamente intelectual, dessa vida “sublimada” em que Aschenbach se encerrou – desemboca na morte. Tadzio, à semelhança da prostituta Esmeralda, não representa apenas a vida, mas a sua dimensão específica, perturbante, contaminadora, que é a beleza. Mann costumava citar Platão, dizendo “quem com os próprios olhos contemplou a beleza está condenado à morte”. Gostaria, de resto, que esta frase fosse a frase de lançamento do filme, pois contém o seu sentido mais profundo.»
A decadência física já se apoderou de Aschenbach e é essa debilidade progressiva do corpo e dos sentidos que o impede de contrabalançar o esforço intelectual que ainda o habita. O peso inexorável do tempo consome-o cada vez mais, criando uma espécie de barreira invisível entre ele e os outros. A câmara de Visconti, esgueirando-se por detrás das colunas da cidade ou contornando os objectos que povoam as salas do hotel, busca uma cumplicidade com esta sensação de progressivo afastamento do mundo, até à inevitável separação final. A última visão a que Aschenbach desesperadamente se tenta agarrar é a da silhueta de Tadzio que se recorta, ao longe, no esplendor duma tarde que desaparece no mar. Visconti, encenador de génio e um aristocrata do cinema, soube, talvez melhor do que ninguém, pintar o crepúsculo duma classe e o fim de uma época. É com Visconti que compreendemos que o romantismo também não escapa à morte. No livro de Thomas Mann, Aschenbach era um escritor e não um músico. Interrogado sobre o porquê de tal mudança, Visconti retorquiu que «no cinema um músico é um ser mais “representável” do que um homem de letras, pois sempre é possível fazer ouvir a música de um compositor, ao passo que para um escritor se é obrigado a recorrer a expedientes fastidiosos e pouco expressivos como a voz-off. Além disso, Mann inspirou-se de facto na figura concreta de um músico, Gustav Mahler. Aliás, o encontro de Mann com Mahler, embora fugaz e sem continuidade, levou-o a definir o compositor, num bilhete que lhe dirigiu pouco depois, como o homem “em que se incarna a vontade artística mais sagrada e mais rigorosa do nosso tempo”. E foi ainda Mann a afirmar que, enquanto se agarrava à redacção de “Morte em Veneza”, ia tomando conhecimento dos relatórios médicos sobre a agonia do compositor, e que em seguida a notícia da sua morte o tocou profundamente. Decerto não é por acaso que o nome próprio de Aschenbach é Gustav, tal como o de Mahler»
Filme muito belo onde a sensualidade se encontra no olhar, “Morte em Veneza”, com um admirável acompanhamento do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, vai-nos revelando o Amor na sua forma mais pura, mais filosófica, resultando numa das mais profundas interrogações de um artista sobre a sua vida e o significado do seu universo : «Pois que a beleza, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo. Ela é a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos», como escreve Mann no seu pequeno livro. Ou ainda a constatação de que a nossa “ordem” não passa, tantas vezes, de um refúgio, vulnerável e inseguro, contra o caos libertador e criativo. Thomas Mann apresenta uma escrita complexa e profunda, onde quase cada parágrafo pode ter várias leituras. Em contraponto, o enredo é practicamente inexistente: um homem de meia-idade viaja até Veneza, apaixona-se por um jovem rapaz polaco extremamente atraente e morre sem sequer ter trocado uma palavra com ele. Se, numa primeira leitura, a homossexualidade se destaca em "Morte em Veneza", à medida que nos vamos debruçando na narrativa, essa questão mostra-se secundária no conjunto da obra. Não foi esta a preocupação central do autor, visto que nem sequer houve contato físico entre as personagens, estando o amor de Aschenbach por Tadzio no âmbito do platónico: a verdadeira atração de Gustav mostra-se ser pela beleza e perfeição do jovem.
Rosenfeld declara que «Aschenbach vê no jovem Tadzio o reflexo temporal da beleza eterna, do ideal sempre perseguido e de tal modo irresistível na sua encarnação que se acha moralmente desarmado diante da imagem perfeita». Logo, a imagem de Tadzio seria uma captura da beleza, que a arte se encarrega por eternizar. Segundo o mesmo autor, o amor de Aschenbach por Tadzio vai se dar como uma paixão narcisista, em que o escritor ama na beleza do jovem a sua própria imagem, a própria meta espiritual, o sonho da beleza. Sonho este que, ironicamente, irá lançá-lo às profundezas da decadência. Relembremos uma passagem da "Morte em Veneza", nomeadamente a parte final do capítulo IV: «Não estava preparado para aquela aparição tão cara, pois ela surgira inesperadamente e ele não tivera tempo para impor ao seu rosto uma expressão de calma e dignidade. Este podia bem trair alegria, surpresa e admiração, quando o seu olhar encontrou o do ausente - e nesse segundo aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu-lhe, expressivo, confiante, encantador e abandonado, com lábios que só lentamente se abriam no sorriso. Era o sorriso de Narciso, inclinado sobre o espelho da água, aquele sorriso profundo, enfeitiçado, prolongado, com o qual estende os braços ao reflexo da sua própria beleza - um sorriso em que os lábios se contorciam um tudo nada, se contorciam talvez na consciência da inutilidade da ambição de beijar os lábios encantadores da sua sombra, coquete, curioso e ligeiramente atormentado, seduzido e sedutor. Aquele que recebera em dom esse sorriso levou-o consigo como uma oferta fatal. Estava de tal modo perturbado, que se viu obrigado a fugir à luz do terraço e dos canteiros iluminados da frente, procurando, em passo apressado, a escuridão do parque traseiro. Admoestações singularmente indignadas e ternas escapavam-se-lhe dos lábios: "Não deves sorrir dessa maneira! Ouves? Não deves sorrir assim a ninguém!" Atirou-se para cima de um banco, fora de si, inspirando o perfurme nocturno das plantas. E, recostado, com os braços pendentes, subjugado e percorrido por frequentes calafrios, murmurou num sussurro a fórmula eterna do desejo - impossível aqui, absurda, abjecta, ridícula e, contudo, sagrada e, apesar de tudo, venerável: "Amo-te!"»
A BELEZA POR PALAVRAS
A "Morte em Veneza" figura entre os livros que mais me marcaram até hoje. É um livro pequenino, mas que tem um mundo dentro dele. A história é a de um deslumbre - uma paixão insidiosa - de um homem mais velho que admira (venera) à distância, um jovem rapaz, inacessível, por força das circunstâncias e das regras do decoro e da moral comummente aceites. O sentimento, porém, existe e instala-se no íntimo do protagonista, por muito ou pouco que isso seja conveniente ou do seu agrado. A narrativa é marcada por uma sensualidade muito particular, que atravessa todos os sentidos, aguçando cada um deles e provocando uma espécie de hiperfuncionamento exacerbado, através do qual a realidade é percepcionada com uma intensidade diferente, ampliada a todos os níveis (o êxtase da expectativa interiormente acalentada, o deleite dos pequenos detalhes percebidos, o júbilo do prazer longínquo e meramente imaginado). «O seu espírito conturbado não queria saber nem desejava nada mais do que perseguir sem descanso o objecto que o encantava, sonhar com ele sempre que estava ausente e - à maneira dos amantes - dirigir palavras de ternura à sua silhueta. A solidão, a estranheza e felicidade de um êxtase profundo e tardio, encorajavam-no e persuadiam-no a permitir-se mesmo o mais extravagante, sem passar pela vergonha e rubores; de modo que um dia, ao regressar tarde de Veneza, parou no primeiro andar do hotel à porta do jovem belo e, em pleno delírio, encostou a testa à dobradiça da porta permanecendo assim durante algum tempo, sem temer ser surpreendido numa posição tão demente.» É esse estado de sensibilidade aumentada que Thomas Mann transmite e que se infiltra em nós ao percorrer estas linhas, fazendo da leitura uma espécie de experiência imersiva, de certa forma vivida e sentida na primeira pessoa. (in https://nointeriordoslivros.blogspot.com/)
MINI-BIOGRAFIA
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