sábado, 22 de outubro de 2022

EU TENHO UM PÁSSARO, DENTRO DA MINHA MÃO!

 Falas. E a tua voz é como uma espada, decepando flores azuis, que são um eco da minha resposta sem palavras (às vezes, é no calar que ficam as grandes respostas e as grandes verdades).

 Eu tenho um pássaro, dentro da minha mão. Comi-lhe as asas e de vez em quando voo; habito então corpos dilacerados de esperar e almas mutiladas de desespero. Ouço-me dizer: «Dá de beber ao tédio, e sente-te livre!». E assim é. E assim faço. E assim vou entretendo esta impaciência de viver...

 Tu, tu és simples, como as flores selvagens que crescem livremente nos campos onde a liberdade é isso, sem mais nada. Sem palavras, sem livros, sem pensamentos, sem influências...; ela é, e isso é tudo! E tu és tudo, por isso mesmo! E invejo-te por o seres e nem disso teres a consciência, tal a tua inocência, tal a tua maravilhosa simplicidade, tal a limpidez da tua permanência neste rio barrento em que vamos seguindo todos, imitando a vida, imitando a felicidade, imitando a ternura, imitando..., imitando tudo! E que mais? O mais, o mais é essa luz indefinida que ao teu olhar pertence, e onde a cor continua por acontecer. E eu canto, canto esse brilho que me banha como uma estrela. Canto, e ao mesmo tempo choro – sem lágrimas é certo, mas para dentro, que é como quem diz, a sorrir...

 Mas tenho um pássaro, dentro da minha mão. Comi-lhe a cabeça e de vez em quando chilreio; timidamente, mas chilreio. Ou não sabias que há qualquer coisa de pássaro em alguns homens? E chilreio sim, talvez ingloriamente, mas é nesse chilrear que habita a esperança de um outro sol, a queimar outra primavera, em outros campos, povoados de outras vozes e atapetados de outras flores. Conspurcados estamos todos e a primavera tem nojo de nós. Mas ela espera...; e talvez regresse um dia, então com um pássaro em cada pétala, em cada flor, em cada semente. E o tédio, o tédio não nos elucida. Enfermos de indiferença, emprestamos almas mortas a corpos vivos que são já cadáveres. Para quê então transformar em tragédia o que já é drama? Onde te levaria isso, esse gesto desesperado, senão aonde nem já o desespero é possível? Valha-nos, ao menos, sermos receptivos ao desespero, pois ele às vezes ressuscita-nos.








Não sei se gostarás disto, desta retórica confusa e amarga, se a compreenderás como eu a compreendo ao escrevê-la, pensando em tudo menos nisto que escrevo agora e aqui, ouvindo a tua voz colher as minhas flores azuis no silêncio desta madrugada húmida e fria, enquanto lado a lado caminhamos, juntos e sós, perto e já longe, olhando o mistério multicolorido dos nossos olhos, onde despontam já os primeiros raios de sol de um novo dia que nunca chega, mas que acreditamos porque há que acreditar em qualquer coisa, mesmo que seja tudo utopia.

 Mas tenho um pássaro, dentro da minha mão. Comi-lhe as patitas e de vez em quando saltito; ébrio de nada, saltito à volta de não sei de quê, como quem espera algo de tão indefinido como..., como a cor dos teus olhos, que não tendo cor alguma, têm todas as cores do mundo (equilibro-me no arco-íris dos teus olhos e caio no meio da vida como um bêbado no meio da rua). Eu espero, tu esperas. Mas nós, nós esperamos? Que sei eu mais do que o longínquo som das marés que sobram dos búzios que oiço através do teu silêncio?

 Há uma praia, eu sei, que espera os que souberem entender esse búzio. E ficaremos ali, vestidos de algas, puros e simples como a madrugada, à espera do pássaro que eu digo que tenho dentro da minha mão...

 Não tenho nada, bem o sabes! Mas pobres de nós, quando já nem pássaros pudermos ou soubermos inventar para preencher esta fome e esta sede de tudo! Por isso escrevo, por isso digo, por isso (te) grito:

«EU TENHO UM PÁSSARO, DENTRO DA MINHA MÃO!»

 Saberás tu entender esta mensagem tão simples, e fazer dela a ânsia maior da tua vida? Se souberes, ouve, se souberes, cala-te e não digas nada (às vezes, é no calar que ficam as grandes respostas e as grandes verdades).

 Lorde Sommer, Dezembro 1971

 (Post by Jota Marques)

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