Quero que agora, já, imediatamente, cagues na infelicidade, na crise, nos mercados financeiros, nos políticos, nos tachos, nas instituições públicas, no presidente da república e nas más pessoas. Quero que cagues até no dinheiro que não tens, na hipoteca que tens de pagar, no salário que nunca chega ao fim do mês. Quero que cagues nisso tudo. Vá: puxa. Vá: caga. E liberta. Vá: caga. E olha, e repara, e sê. Nada vale mais a pena do que ser, nada vale mais a pena do que respirar. Respirar por respirar. Respira.
Respira a criança que ri. Olha-a nos olhos, sente-lhe o sonho, a esperança, o futuro. Sente, nela, que vale a pena continuar, que vale a pena tudo o resto para que algo assim te caia nas mãos – para que algo assim te caia nos olhos. Respira a chuva que cai, o sol que aquece, o vento que empurra. Respira o cheiro da terra húmida, a imponência da árvore erguida, a magia das asas de um pássaro. Respira – para saberes que vale a pena continuar.
Respira o sabor de um beijo, o toque de um afago, o som de um arfar. Respira a mão de fogo de quem te ama, o suor em êxtase de quem te chama. E o abraço que não passa, e as palavras que te embraçam, e os olhares que te apertam. Respira – para saberes que vale a pena continuar.
Respira ainda quem tens contigo, quem te quer, quem te cuida, quem te acompanha. Respira também quem não tens contigo, quem gostavas de ter contigo e partiu sem nunca deixar de ficar, quem queres e não te quer mas que por existir te faz existir. Respira a tristeza como respires a felicidade, a saudade como respiras a presença. Respira o que faz parte da tua vida – porque é o que faz parte da tua vida que te faz sentir vivo. Respira – para saberes que vale a pena continuar.
Podia dizer-te que tudo vai ficar melhor, que tudo vai correr bem com esta bosta deste país, com esta merda deste mundo, com este nojo desta sociedade, com este excremento chamado economia. Podia dizer-te que sempre que o Homem esteve em crise ficou melhor Homem, que sempre que o Homem bateu no fundo chegou mais alto. Podia ainda dizer-te que é sob pressão que mais se fala ao coração, que mais se sente a emoção. Podia fazer-te acreditar que acredito que é possível dar a volta, que é possível mudar a sorte – porque a sorte, por sorte todos o sabemos, não é mais do que a competência de quem gere o destino. Podia fazer mil e uma coisas, dar-te mil e um conselhos, mil e uma palmadinhas nas costas. Mas não: prefiro dizer-te, como te disse, para respirares. Para sentires o que tens e o que não tens como provas indubitáveis de que tens tudo aquilo de que precisas. Porque, no fundo, tudo aquilo de que precisas é um corpo para respirar e um mundo para viver. Pode ser uma merda, pode não valer a ponta de um corno. Mas é o mundo: o teu mundo. Aproveita-o. E respira. Até que te falte a respiração.
(Pedro
Chagas Freitas in “Eu Sou Deus”, Marcador, Janeiro 2016)
(Post by Jota Marques)
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