«O sobressalto começa no título. Mesmo o leitor menos experiente suspeita que, embora escritores de todos os tempos e lugares se tenham dedicado a tentar definir o amor, talvez seja improvável que alguém alguma vez tenha optado por terminar uma frase começada pela expressão «o amor é» com a palavra "fodido". O amor costuma ter, apesar de tudo, boa imprensa - o que, pensando bem, é incompreensível. Dizer que o amor é fodido é, finalmente, tratá-lo como ele merece. É resumir, para quem não quer perder tempo com eufemismos eruditos, a etimologia da palavra paixão. Mas talvez “O Amor é Fodido” seja menos uma história do que uma tese. Uma sugestão acerca de um modo de falar. Uma hipótese sobre o modo de lidar, literariamente e não só, com o amor. Uma proposta que questiona se será apropriado descrever uma doença aterradora com metro e rima e que propõe, por isso, uma espécie de anti-lirismo. Ou, talvez mais exactamente, um lirismo anti-lírico. De acordo com esta tese, dizer que o amor é fogo que arde sem se ver é que é obsceno. Notar que é fodido é mera candura.» (do prefácio de Ricardo Araújo Pereira)
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«O dia em que a vi pela primeira vez. Santo Deus. Mãe de nós pecadores. Rogai por nós. A camisola que trazia! Era branca de neve, soltando novelos selvagens de angorá. Bastava olhar para aquela camisola para ficar marcado para a vida. Eu tinha um casaco azul, do meu período de praia, e fiquei coberto de caspa de lã fosforescente, luzidio e chamativo, só por ter tentado beijá-la.
Eu era um farol que passeava pela noite, atraindo os zombadores, para que pudessem zombar. E os caseiros, para que pudessem orgulhar-se de ter ficado em casa. Eu era um aviso em carne e osso aos candidatos a namoradeiros deste mundo: «Olha o que te pode acontecer!» Era esta a minha mensagem. Apaga a luz. Vai para o caralho. Pirilampo era o caralho do teu pai.
Devia ter percebido logo pela camisola que ela era uma rapariga má – porque nunca mais a vestiu. Não me perguntem a lógica deste raciocínio, porque me escapa. Mas há algo de sinistro numa mulher que só usa roupa uma vez. Nunca vinha igual. Dizia sempre que vinha igual, mas mentia. Eu também não reparava – por isso até estávamos bem um para o outro. Quando ela mentia eu acreditava.»
Filho de mãe inglesa e pai português, Miguel Esteves Cardoso (MEC) nasceu em Lisboa, em 1955, e quis ser escritor desde que se lembra de ler. Tem duas filhas, Sara e Tristana, e um casamento muito feliz com Maria João. Aluno brilhante, Miguel Esteves Cardoso fez os seus estudos secundários na Saint Julian's School e os superiores fora de Portugal, no Reino Unido. Em 1979, na Universidade de Manchester, licenciou-se em Estudos Políticos. Em 1982 vai para o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, como investigador auxiliar. Pouco depois ingressa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa da Universidade de Lisboa, como professor auxiliar de Sociologia Política. Foi igualmente co-fundador do Gabinete de Filosofia do Conhecimento. Nas duas instituições foi contemporâneo de outros sociólogos conhecidos pela sua participação na vida pública: António Barreto, Vasco Pulido Valente e Maria Filomena Mónica. Em 1983 doutorou-se em Filosofia Política, com uma tese que relacionava a saudade e o sebastianismo no Integralismo Lusitano. Posteriormente, voltou a Inglaterra como visiting fellow do St. Antony's College, em Oxford, fazendo um pós-doutoramento em Filosofia Política. No ano de 1988, porém, Miguel Esteves Cardoso decidiu abandonar a carreira académica, para se dedicar à comunicação social, nomeadamente ao jornal "O Independente", cuja direção assumiu.
A partir do contacto estreito com as bandas pós-punk e new wave da editora Factory, tais como Joy Division, New Order, Durutti Column ou The Fall, aquando da sua estada no Reino Unido, «MEC» (como era conhecido pelos fãs) começou por se dar a conhecer como cronista, escrevendo sobre música pop nos jornais "Se7e", "O Jornal" (actual "Visão") ou "Música & Som". Essas crónicas eram avidamente lidas pelos jovens portugueses, em complemento à transmissão da mesma música em programas como "Rock em Stock", de Luís Filipe Barros, "Rotação", "Rolls Rock" e "Som da Frente", de António Sérgio, na Rádio Renascença e na Rádio Comercial. Também se dedicou à crítica literária e cinematográfica, no "Jornal de Letras". Da imprensa, rapidamente passou a ser presença constante na rádio e na televisão, em parte devido à sua aparência invulgar e desajeitada de jovem intelectual, ingénuo e perverso, e às suas intervenções imprevisíveis, irónicas e irreverentes, às vezes desconcertantes. Na rádio foi autor e co-autor de diversos programas de rádio como "Trópico de Dança", "Aqui Rádio Silêncio", "W", "Dançatlântico" e "A Escola do Paraíso", todos na Rádio Comercial. Também colaborou com Herman José, como guionista do programa "Humor de Perdição", transmitido pela RTP em 1987. Estabeleceu polémicas com alguns intelectuais e escritores como Fernando Namora ou Eduardo Prado Coelho.
A convite de Vicente Jorge Silva, tornou-se colaborador do "Expresso", onde as suas crónicas satíricas "A Causa das Coisas" e "Os Meus Problemas", conheceram o acompanhamento regular de muitos leitores e o sucesso junto da juventude de classe média. Já na década de 1990 «MEC» viria a participar em vários talk-shows televisivos, entre os quais o popular "A Noite da Má-Lingua" (SIC) onde, semanalmente, sob a moderação de Júlia Pinheiro e na companhia de Manuel Serrão, Rui Zink, Rita Blanco, Alberto Pimenta, Luís Coimbra, Constança Cunha e Sá e Graça Lobo, eram satirizadas figuras e situações da vida pública portuguesa e internacional. Monárquico e anti-europeísta convicto, apresentou-se como candidato a deputado ao Parlamento Europeu, em 1987, como independente nas listas do Partido Popular Monárquico, não conseguindo a eleição, mas dando a esse partido o melhor resultado eleitoral de sempre. Ainda na década de 1980 Esteves Cardoso funda, com Pedro Ayres Magalhães, Ricardo Camacho e Francisco Sande e Castro, a "Fundação Atlântica", uma das primeiras editoras independentes portuguesas, produzindo discos de nomes como Sétima Legião, Xutos e Pontapés, Delfins, Paulo Pedro Gonçalves, Anamar e o album "Amigos em Portugal" dos Durutti Column. Daria também contributo directo à música pop portuguesa como letrista, com "Alhur", de Né Ladeiras, e "Foram Cardos Foram Prosas" (com música de Ricardo Camacho, interpretada por Manuela Moura Guedes). Em 1987 Esteves Cardoso foi incentivado pela actriz Graça Lobo a integrar-se na Companhia de Teatro de Lisboa, o que o levou à dramaturgia. Publicou então "Carne Cor-de-Rosa Encarnada" (encenada por Carlos Quevedo no Teatro Villaret), "Os Homens" (encenado por Graça Lobo) e traduziu várias peças de Samuel Beckett, das quais é digna de menção "Worstward Ho", que ficou com o título de "Pioravante Marche". Anos mais tarde intensificou a sua relação com a literatura, o que o faz afastar-se do jornalismo.
O seu primeiro romance, "O Amor é Fodido", publicado em 1994, foi um best-seller, em boa parte devido ao título. Publicou mais dois romances, "A Vida Inteira" e "O Cemitério de Raparigas" e continuou a escrever crónicas em jornais, primeiro n'"O Independente", mais tarde no "Diário de Notícias". Em 1999, criou também um blogue, chamado "Pastilhas", que abandonou em 2002. No final dos anos 90, por motivos que nunca revelou, Miguel Esteves Cardoso abandonou subitamente os ecrãs televisivos, tornando-se mediaticamente invisível durante bastantes anos. Só voltaria a partir de 2017-2018, com o programa "Fugiram de casa dos seus pais", na RTP. Autor de uma obra que abarca todos os géneros, MEC foi o primeiro influenciador do país, mesmo antes de se falar em influenciadores. Há quatro décadas que traça o mais original e belo retrato de um dos mais antigos países do mundo, chamado Portugal. Casou-se por três vezes, a última das quais em 2000, com Maria João Lopes Pinheiro. Tem duas filhas, Sara e Tristana, do primeiro casamento, a quem os Durutti Column dedicaram um tema com esse título no álbum "Amigos em Portugal". Numa entrevista dada em 2006 Esteves Cardoso reconheceu ter tido problemas com álcool e o uso de cocaína, nos frenéticos tempos em que trabalhou no "Independente". É opositor do Acordo Ortográfico de 1990, gosta de gatos e aprecia a boa gastronomia.
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