Editora: Livros do Brasil Lisboa
Tradução: Sousa Victorino
Capa de Infante do Carmo
Dimensões: 145 X 210 x 18 mm
Nº de páginas: 208
«Uma vista de olhos a Os Inadaptados mostra que está escrito duma forma pouco comum, nem de romance, nem de peça de teatro nem de argumento cinematográfico. Talvez se justifique uma palavra de explicação. É uma história concebida como um filme e todas as suas palavras têm o fim de indicar à câmara de filmar o que deve ver e aos actores o que têm a dizer. É, no entanto, a espécie de narrativa que a forma telegráfica, de diagrama, do argumento cinematográfico não pode transmitir, porque o seu sentido depende tanto dos cambiantes de carácter e de lugar como da intriga. Tornou-se, por conseguinte, necessário, fazer mais do que indicar apenas o que acontece; criar por meio das palavras as emoções que o filme acabado deveria possuir. Foi como se já existisse um filme e o escritor estivesse a recriar a plenitude dos seus efeitos através da linguagem, de modo que, como resultado duma tentativa puramente funcional de tornar clara para outros a visão dum filme, de um filme que apenas existisse ainda na mente do escritor, lhe houvesse sido sugerida por si mesma uma forma de ficção, uma forma híbrida se quiserem, mas uma forma que me parece ter vigorosas possibilidades de reflectir a existência contemporânea. O cinema, a forma de arte mais difundida pela terra, criou, com vontade ou sem ela, um modo particular de ver a vida, e as suas rápidas transições, a súbita junção de imagens díspares, o seu efeito de documentação inevitável em fotografia, a sua economia de narração do argumento e a sua concentração na acção muda, infiltraram-se no romance e na peça de teatro —especialmente nesta última — sem que o facto seja confessado ou, por vezes, sem que seja de modo nenhum conscientemente realizado. Os Inadaptados utiliza declaradamente as perspectivas do filme, de forma a criar uma ficção que possa ter a imediação peculiar da imagem e as possibilidades de reflexão da palavra escrita."
Arthur Miller
Qualquer realizador ambiciona criar pelo menos um clássico durante a sua carreira – um filme que aguente o teste do tempo e seja visto e revisto por sucessivas gerações de cinéfilos. Outros, menos ambiciosos, já se contentam em, por algum motivo, conseguirem gerar um cult-movie – uma espécie de filme B, que também aguenta o passar dos anos, mas cujas qualidades só são reconhecidas por uma pequena minoria. John Huston conseguiu ambas as coisas com este belissimo filme, rodado logo no início da década de sessenta. Para além de um clássico e de um filme de culto, “The Misfits/Os Inadaptados” é um filme-charneira, pois de certo modo simboliza o fim do studio system de Hollywood. Realizado à parte da indústria fílmica, em completa liberdade, o filme define ainda o “fim da linha” para as carreiras de Clark Gable e Marilyn Monroe. Marilyn ainda haveria de participar na rodagem de mais um filme (“Something Got To Give”) mas a sua morte prematura aos 36 anos (a 5 de Agosto de 1962), impediria o filme de ser finalizado e abrir-lhe-ia as portas da lenda e da eternidade.
Clark Gable encontraria essas mesmas portas ainda mais cedo, logo a seguir à conclusão da rodagem de “The Misfits”. Faleceu a 16 de Novembro de 1960, na sequência de um ataque cardíaco. O final das filmagens trouxe-lhe um temporário alívio («Working with Marilyn Monroe on "The Misfits" nearly gave me a heart attack. I have never been happier when a film ended»), apesar de reconhecer a grande qualidade das interpretações, quer a de Marilyn («Everything Marilyn does is different from any other woman, strange and exciting, from the way she talks to the way she uses that magnificent torso») quer a sua própria («This is the best picture I have made, and it's the only time I've been able to act»).
Quando as filmagens de "The Misfits" acabaram, Marilyn e Miller regressaram a Nova Iorque em voos separados. A 11 de Novembro de 1960, dia do Armistício, e conforme prometera, Marilyn deu uma entrevista em exclusivo a Earl Wilson. «O casamento de Marilyn e Arthur Miller terminou», escreveu Wilson na sua história. «Em breve haverá um divórcio amigável». Marilyn, de novo cercada pelos jornalistas, apareceu pálida e chorosa para confirmar a história. No meio da confusão, um jornalista bateu-lhe com um microfone na boca, partindo-lhe um dente. Menos de uma semana depois, às quatro da manhã, Marilyn foi acordada com a notícia de que Clark Gable tinha morrido, com um ataque de coração. Falando com um jornalista pelo telefone, Marilyn soluçou: «Oh, meu Deus, que tragédia! Conhecê-lo e trabalhar com ele foi para mim uma alegria muito grande. Envio todo o meu carinho e profundas condolências à sua esposa, Kay».
Outro grande actor que marca este mítico filme, Montgomery Clift, entraria num acelerado processo de decadência física e profissional, tendo falecido prematuramente a 23 de Julho de 1966, apenas com 45 anos. Marilyn diria dele: «The only person I know who is in worse shape than I am». Por uma vez os tradutores portugueses achariam um título adequado para o filme: “Os Inadaptados” (no Brasil seriam “Os Desajustados”). Efectivamente é de inadaptação que aqui se trata. Inadaptação a um novo modo de vida que começa, encerrando um tempo de glória. Esse tempo de glória, outrora tão repleto de tradições, encontra-se agora agonizante, cercado pelo conformismo e pela apatia. Tenta-se ainda, num derradeiro esforço, alcançar a felicidade. Mas esta teima em fugir, diluindo-se na imensidão de um deserto, algures no Nevada.
A perseguição aos cavalos rapidamente se revela incongruente e desnecessária para quem conserva ainda a ilusão da possibilidade dessa felicidade. E é essa descoberta que tanto nos emociona naquele epílogo – a liberdade é essencial para quem deseja ainda ser feliz. O plano final, de Roslyn e Gay é disso revelador:
Com argumento de Arthur Miller, então ainda casado com Marilyn (o divórcio oficial viria a 24 de Janeiro de 1961, apesar de se terem separado imediatamente após o final da rodagem) e filmado poeticamente por um inspirado John Huston (que seria nomeado para o prémio “Directors Guilde of America”), “The Misfits” tem o seu epílogo, como vimos antes, numa longa e dramática sequência no deserto do Nevada onde a estrela Marilyn brilha intensamente sobre tudo e todos. Não tanto pela explosão de revolta («Killers! Murders! You liars! All of you liars! You're only happy when you can see something die! Why don't you kil yourself to be happy! You and your God's country! Freedom! I am not kidding you, you're three sweet damned men!») mas sobretudo pelas mil e uma matizes que conferem ao seu rosto algo de hipnótico e fascinante.
São diversos os grandes-planos desse maravilhoso rosto, mas vale a pena rever várias vezes um deles (felizmente o DVD permite-nos isso), segundos após a libertação do potro selvagem e em que as palavras «Go Home…Go» são proferidas. Essas três palavras, ditas por aquela boca, naquela face, dá-nos, por breves momentos, toda a magia do Cinema. Resplandescente ao longo de todo o filme, não será exagero afirmar que esta interpretação de Marilyn será talvez o ponto mais alto de toda a sua carreira, apesar de grandes e maravilhosos desempenhos em filmes anteriores.
As imagens da rodagem do filme correram mundo. Obtidas pelos prestigiados fotógrafos da Magnum num ambiente verdadeiramente mítico, impuseram a agência como um grupo de artistas capazes de dar a ver o mundo do cinema para lá das suas imagens promocionais. Os nove fotógrafos, sete homens e duas mulheres, tudo registaram de forma púdica ou indiscreta, fria ou apaixonadamente - Henri Cartier-Bresson, Cornell Capa, Ernst Hass, Bruce Davidson, Erich Hartmann, Dennis Stock, Elliott Erwitt, os homens; Eve Arnold e Inge Morath, as mulheres. Fizeram centenas de magníficas fotografias que recentemente tivemos o privilégio de poder ver numa exposição em Lisboa. Aconselha-se ainda o livro “Magnum Cinema” onde, para além dos “The Misfits” se podem apreciar fotografias de dezenas de outros filmes. Transcreve-se de seguida um texto da autoria de Inge Morath, responsável pela agência e com quem Arthur Miller se viria a casar: «Havia cavalos selvagens, as paisagens do Nevada, John Huston e ainda, claro, três actores excepcionais, Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift. Não podíamos imaginar que eles iriam morrer tão depressa. Sentíamos que havia algo de grandioso. Esperávamos um filme notável, não sabíamos que se ia tornar mítico.
Uma das maiores angústias da produção era saber se Marilyn vinha à rodagem ou não. Quando ela chegava ao plateau, entrava verdadeiramente em cena. Quando o deixava, desaparecia completamente e mais ninguém a via. Trabalhava sempre para a sua imagem. Eu tentava conseguir fotografias em que ela não estivesse em pose. Mexia-se de uma maneira que atraía automaticamente os olhos do fotógrafo. Clark Gable era muito divertido. Enquanto estava à espera da Marilyn, contava-nos a história dos seus começos no cinema. Um dia disse-lhe que não tinha visto o que acabara de fazer. Ele respondeu-me que tinha usado os olhos para representar. E era verdade, principalmente nas últimas cenas, as que se passam no automóvel. Conheci Arthur Miller na rodagem, mas só o descobri de verdade depois da ruptura com Marilyn. Trabalhei em muitos outros filmes depois daquele, mas nunca voltei a encontrar aquele ambiente especialíssimo, aquela alquimia particular, devido à unidade artística imposta por Huston no plateau, e que afectava tanto os actores, como os técnicos e os fotógrafos.»
ARTHUR MILLER (1949) |
A sua peça “Morte de um Caixeiro Viajante” (1949) venceu o Prémio Pulitzer de Teatro e três Prémios Tony, bem como o prémio do Círculo de Críticos de Teatro de Nova Iorque. Foi a primeira peça a conseguir os três em simultâneo. A peça seguinte, “The Crucible”, inaugurou-se na Broadway a 22 de janeiro de 1953. Em 1956 divorciou-se. Em Junho do mesmo ano, comparece perante o Comité das Actividades Anti-Americanas, depois de ter sido denunciado por Elia Kazan como tendo participado em reuniões do Partido Comunista. No final desse mesmo mês (29 de Junho), casa-se com Marilyn Monroe, que tinha conhecido oito anos antes. A 31 de Maio de 1957, Miller é considerado culpado de desobediência ao Congresso por se recusar a revelar os nomes dos membros de um círculo literário suspeito de pertencer ao Partido Comunista. A sua condenação foi anulada pelo Tribunal Federal de Apelação a 8 de Agosto de 1958. No mesmo ano publica as suas peças na colectânea “Collected Plays”.
Divorcia-se de Marilyn a 24 de Janeiro de 1961, a qual viria a falecer tragicamente a 5 de Agosto do ano seguinte. Casa-se, um ano mais tarde, com Inge Morath, a 17 de fevereiro de 1962. Conheceram-se enquanto os fotógrafos da agência Magnum documentavam a realização do filme “The Misfits”. Tiveram duas crianças, Rebecca Miller nascida em setembro de 1962 e Daniel. Rebecca casou-se com Daniel Day-Lewis em 1996. De acordo com o biógrafo Martin Gottfried, Daniel nasceu em novembro de 1966 com síndroma de Down. Miller pôs o filho à guarda de uma instituição em Roxbury, Connecticut, e nunca o visitou (ainda que a sua mulher o fizesse). Miller não fala de Daniel na sua autobiografia “Timebends”, de 1987.
(Post by Jota Marques)
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