quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

OS INADAPTADOS

 
Título original: “The Misfits” (in “Esquire”, Outubro 1957)
Editora: Livros do Brasil Lisboa 
Tradução: Sousa Victorino
Capa de Infante do Carmo
Dimensões: 145 X 210 x 18 mm
Nº de páginas: 208

«Uma vista de olhos a Os Inadaptados mostra que está escrito duma forma pouco comum, nem de romance, nem de peça de teatro nem de argumento cinematográfico. Talvez se justifique uma palavra de explicação. É uma história concebida como um filme e todas as suas palavras têm o fim de indicar à câmara de filmar o que deve ver e aos actores o que têm a dizer. É, no entanto, a espécie de narrativa que a forma telegráfica, de diagrama, do argumento cinematográfico não pode transmitir, porque o seu sentido depende tanto dos cambiantes de carácter e de lugar como da intriga. Tornou-se, por conseguinte, necessário, fazer mais do que indicar apenas o que acontece; criar por meio das palavras as emoções que o filme acabado deveria possuir. Foi como se já existisse um filme e o escritor estivesse a recriar a plenitude dos seus efeitos através da linguagem, de modo que, como resultado duma tentativa puramente funcional de tornar clara para outros a visão dum filme, de um filme que apenas existisse ainda na mente do escritor, lhe houvesse sido sugerida por si mesma uma forma de ficção, uma forma híbrida se quiserem, mas uma forma que me parece ter vigorosas possibilidades de reflectir a existência contemporânea. O cinema, a forma de arte mais difundida pela terra, criou, com vontade ou sem ela, um modo particular de ver a vida, e as suas rápidas transições, a súbita junção de imagens díspares, o seu efeito de documentação inevitável em fotografia, a sua economia de narração do argumento e a sua concentração na acção muda, infiltraram-se no romance e na peça de teatro —especialmente nesta última — sem que o facto seja confessado ou, por vezes, sem que seja de modo nenhum conscientemente realizado. Os Inadaptados utiliza declaradamente as perspectivas do filme, de forma a criar uma ficção que possa ter a imediação peculiar da imagem e as possibilidades de reflexão da palavra escrita."

Arthur Miller


Guido: «You have the gift for life, Rosylyn. The rest of us,
we're just looking for a place to hide and watch it all go by»

Qualquer realizador ambiciona criar pelo menos um clássico durante a sua carreira – um filme que aguente o teste do tempo e seja visto e revisto por sucessivas gerações de cinéfilos. Outros, menos ambiciosos, já se contentam em, por algum motivo, conseguirem gerar um cult-movie – uma espécie de filme B, que também aguenta o passar dos anos, mas cujas qualidades só são reconhecidas por uma pequena minoria. John Huston conseguiu ambas as coisas com este belissimo filme, rodado logo no início da década de sessenta. Para além de um clássico e de um filme de culto, “The Misfits/Os Inadaptados” é um filme-charneira, pois de certo modo simboliza o fim do studio system de Hollywood. Realizado à parte da indústria fílmica, em completa liberdade, o filme define ainda o “fim da linha” para as carreiras de Clark Gable e Marilyn Monroe. Marilyn ainda haveria de participar na rodagem de mais um filme (“Something Got To Give”) mas a sua morte prematura aos 36 anos (a 5 de Agosto de 1962), impediria o filme de ser finalizado e abrir-lhe-ia as portas da lenda e da eternidade.

Clark Gable encontraria essas mesmas portas ainda mais cedo, logo a seguir à conclusão da rodagem de “The Misfits”. Faleceu a 16 de Novembro de 1960, na sequência de um ataque cardíaco. O final das filmagens trouxe-lhe um temporário alívio («Working with Marilyn Monroe on "The Misfits" nearly gave me a heart attack. I have never been happier when a film ended»), apesar de reconhecer a grande qualidade das interpretações, quer a de Marilyn («Everything Marilyn does is different from any other woman, strange and exciting, from the way she talks to the way she uses that magnificent torso») quer a sua própria («This is the best picture I have made, and it's the only time I've been able to act»).

Quando as filmagens de "The Misfits" acabaram, Marilyn e Miller regressaram a Nova Iorque em voos separados. A 11 de Novembro de 1960, dia do Armistício, e conforme prometera, Marilyn deu uma entrevista em exclusivo a Earl Wilson. «O casamento de Marilyn e Arthur Miller terminou», escreveu Wilson na sua história. «Em breve haverá um divórcio amigável». Marilyn, de novo cercada pelos jornalistas, apareceu pálida e chorosa para confirmar a história. No meio da confusão, um jornalista bateu-lhe com um microfone na boca, partindo-lhe um dente. Menos de uma semana depois, às quatro da manhã, Marilyn foi acordada com a notícia de que Clark Gable tinha morrido, com um ataque de coração. Falando com um jornalista pelo telefone, Marilyn soluçou: «Oh, meu Deus, que tragédia! Conhecê-lo e trabalhar com ele foi para mim uma alegria muito grande. Envio todo o meu carinho e profundas condolências à sua esposa, Kay».

Outro grande actor que marca este mítico filme, Montgomery Clift, entraria num acelerado processo de decadência física e profissional, tendo falecido prematuramente a 23 de Julho de 1966, apenas com 45 anos. Marilyn diria dele: «The only person I know who is in worse shape than I am». Por uma vez os tradutores portugueses achariam um título adequado para o filme: “Os Inadaptados” (no Brasil seriam “Os Desajustados”). Efectivamente é de inadaptação que aqui se trata. Inadaptação a um novo modo de vida que começa, encerrando um tempo de glória. Esse tempo de glória, outrora tão repleto de tradições, encontra-se agora agonizante, cercado pelo conformismo e pela apatia. Tenta-se ainda, num derradeiro esforço, alcançar a felicidade. Mas esta teima em fugir, diluindo-se na imensidão de um deserto, algures no Nevada.

A perseguição aos cavalos rapidamente se revela incongruente e desnecessária para quem conserva ainda a ilusão da possibilidade dessa felicidade. E é essa descoberta que tanto nos emociona naquele epílogo – a liberdade é essencial para quem deseja ainda ser feliz. O plano final, de Roslyn e Gay é disso revelador:

Gay: «Pois agora conheço-te, Roslyn, conheço-te de facto. Talvez seja toda a paz que há ou pode haver em conhecermo-nos. Até hoje, nunca me tinha aborrecido a lutar contra uma mulher. E era repousante mas muito semelhante a abraçar o ar. Desta vez, pensei que a minha mão voltaria apenas a apanhar o ar... mas é como se sentisse o mundo inteiro na mão. Graças a ti, querida!»
Ela salta-lhe ao pescoço, beijando-o apaixonadamente. A cadela ladra, lá fora. Roslyn corre para fora da cabina ao seu encontro e o animal acolhe-a cheia de alegria. Desprende-a e bate as palmas para ela a seguir. A cadela salta para a plataforma da camioneta e ela volta a entrar para a cabina com o rosto transbordante de amor. Gay arranca e seguem. De repente, no arrebatamento de uma visão interior:
Roslyn: «Se... se não tivéssemos medo, Gay?! Poderíamos ter um filho. E poderíamos fazê-lo corajoso. Uma pessoa no mundo que poderia ser corajosa desde o princípio! Até esta noite eu tinha medo. Mas agora já não tenho tanto. E tu?»
Ele cinge-a, bem junto de si. Guia. O amor entre eles é capaz de viver, erguendo-os um pouco acima da terra. Os faróis captam agora tufos de salva, e a viagem passa a ser aos solavancos.
Roslyn: «Como é que encontras o caminho de volta, às escuras?»
Gay abana a cabeça, indicando o céu à sua frente:
«É só seguir a direito na direcção daquela grande estrela. A auto-estrada fica por baixo dela. Leva-nos direitinhos a casa».
Ela levanta os olhos para a estrela através dos riscos e do pó do pára-brisas. O som do aeroplano de Guido alcança-os, rugindo, e afasta-se, invisível, lá no alto. Os faróis da camioneta desaparecem gradualmente e, com eles, todo o som. Agora apenas há o céu, cheio de estrelas, e o absoluto silêncio.



Com argumento de Arthur Miller, então ainda casado com Marilyn (o divórcio oficial viria a 24 de Janeiro de 1961, apesar de se terem separado imediatamente após o final da rodagem) e filmado poeticamente por um inspirado John Huston (que seria nomeado para o prémio “Directors Guilde of America”), “The Misfits” tem o seu epílogo, como vimos antes, numa longa e dramática sequência no deserto do Nevada onde a estrela Marilyn brilha intensamente sobre tudo e todos. Não tanto pela explosão de revolta («Killers! Murders! You liars! All of you liars! You're only happy when you can see something die! Why don't you kil yourself to be happy! You and your God's country! Freedom! I am not kidding you, you're three sweet damned men!») mas sobretudo pelas mil e uma matizes que conferem ao seu rosto algo de hipnótico e fascinante.



São diversos os grandes-planos desse maravilhoso rosto, mas vale a pena rever várias vezes um deles (felizmente o DVD permite-nos isso), segundos após a libertação do potro selvagem e em que as palavras «Go Home…Go» são proferidas. Essas três palavras, ditas por aquela boca, naquela face, dá-nos, por breves momentos, toda a magia do Cinema. Resplandescente ao longo de todo o filme, não será exagero afirmar que esta  interpretação de Marilyn será talvez o ponto mais alto de toda a sua carreira, apesar de grandes e maravilhosos desempenhos em filmes anteriores.



As imagens da rodagem do filme correram mundo. Obtidas pelos prestigiados fotógrafos da Magnum num ambiente verdadeiramente mítico, impuseram a agência como um grupo de artistas capazes de dar a ver o mundo do cinema para lá das suas imagens promocionais. Os nove fotógrafos, sete homens e duas mulheres, tudo registaram de forma púdica ou indiscreta, fria ou apaixonadamente - Henri Cartier-Bresson, Cornell Capa, Ernst Hass, Bruce Davidson, Erich Hartmann, Dennis Stock, Elliott Erwitt, os homens; Eve Arnold e Inge Morath, as mulheres. Fizeram centenas de magníficas fotografias que recentemente tivemos o privilégio de poder ver numa exposição em Lisboa. Aconselha-se ainda o livro “Magnum Cinema” onde, para além dos “The Misfits” se podem apreciar fotografias de dezenas de outros filmes. Transcreve-se de seguida um texto da autoria de Inge Morath, responsável pela agência e com quem Arthur Miller se viria a casar: «Havia cavalos selvagens, as paisagens do Nevada, John Huston e ainda, claro, três actores excepcionais, Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift. Não podíamos imaginar que eles iriam morrer tão depressa. Sentíamos que havia algo de grandioso. Esperávamos um filme notável, não sabíamos que se ia tornar mítico.

Esta filmagem interessou-me desde o início. Tinha lido na revista Esquire a história de Arthur Miller que serviu de base ao guião. Já tinha trabalhado com Huston, e Monty Clift era um amigo. A Magnum tinha feito um acordo de exclusividade com Frank Taylor, o produtor do filme. Então, por turnos de dois, sucedemo-nos no plateau. Não ficávamos lá mais que duas semanas, para manter a frescura do olhar. Eu formava equipa com Cartier-Bresson. Compreendíamo-nos muito bem e o que era maravilhoso é que nem precisávamos de falar um com o outro. Trabalhávamos juntos e tínhamos sempre a certeza de não fazer nunca a mesma coisa. Havia nesta filmagem uma liberdade que já não existe nos dias de hoje. Portanto, desde que os nossos olhos e pernas fossem suficientemente rápidos, podíamos fotografar tudo o que quiséssemos.

Uma das maiores angústias da produção era saber se Marilyn vinha à rodagem ou não. Quando ela chegava ao plateau, entrava verdadeiramente em cena. Quando o deixava, desaparecia completamente e mais ninguém a via. Trabalhava sempre para a sua imagem. Eu tentava conseguir fotografias em que ela não estivesse em pose. Mexia-se de uma maneira que atraía automaticamente os olhos do fotógrafo. Clark Gable era muito divertido. Enquanto estava à espera da Marilyn, contava-nos a história dos seus começos no cinema. Um dia disse-lhe que não tinha visto o que acabara de fazer. Ele respondeu-me que tinha usado os olhos para representar. E era verdade, principalmente nas últimas cenas, as que se passam no automóvel. Conheci Arthur Miller na rodagem, mas só o descobri de verdade depois da ruptura com Marilyn. Trabalhei em muitos outros filmes depois daquele, mas nunca voltei a encontrar aquele ambiente especialíssimo, aquela alquimia particular, devido à unidade artística imposta por Huston no plateau, e que afectava tanto os actores, como os técnicos e os fotógrafos.»

ARTHUR MILLER (1949)

Arthur Asher Miller (Nova Iorque, 17 de Outubro de 1915 — Roxbury, Connecticut, 10 de Fevereiro de 2005) foi um dramaturgo norte-americano. Conhecido por ser o autor das peças “Death of a Salesman/Morte de um Caixeiro Viajante” e de “The Crucible/As Bruxas de Salem”, e por se ter casado com a actriz Marilyn Monroe em 1956. Morreu de insuficiência cardíaca crónica, com 89 anos. Miller era filho de um casal de imigrantes judeus polacos: Isadore, um empresário têxtil, e Augusta, dona-de-casa. O casal teve ainda mais dois filhos, Kermit e Joan. A família vivia numas águas-furtadas, em Manhattan, com vista sobre Central Park até ao momento em que Isadore ficou arruinado com a Grande Depressão. Em 1936, a primeira peça escrita por Arthur Miller, “Honors at Dawn”, com a qual ganhou o Prémio Hopwood, foi encenada na Universidade de Michigan. Dois anos mais tarde, graduou-se nesta mesma universidade em jornalismo. Em 1940, Miller casou-se com a sua namorada, desde o colégio, Mary Slattery. Tiveram dois filhos, Jane e Robert. Esteve isento do serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial devido a uma lesão que contraíra num jogo de futebol americano.



A sua peça “Morte de um Caixeiro Viajante” (1949) venceu o Prémio Pulitzer de Teatro e três Prémios Tony, bem como o prémio do Círculo de Críticos de Teatro de Nova Iorque. Foi a primeira peça a conseguir os três em simultâneo. A peça seguinte, “The Crucible”, inaugurou-se na Broadway a 22 de janeiro de 1953. Em 1956 divorciou-se. Em Junho do mesmo ano, comparece perante o Comité das Actividades Anti-Americanas, depois de ter sido denunciado por Elia Kazan como tendo participado em reuniões do Partido Comunista. No final desse mesmo mês (29 de Junho), casa-se com Marilyn Monroe, que tinha conhecido oito anos antes. A 31 de Maio de 1957, Miller é considerado culpado de desobediência ao Congresso por se recusar a revelar os nomes dos membros de um círculo literário suspeito de pertencer ao Partido Comunista. A sua condenação foi anulada pelo Tribunal Federal de Apelação a 8 de Agosto de 1958. No mesmo ano publica as suas peças na colectânea “Collected Plays”.



Divorcia-se de Marilyn a 24 de Janeiro de 1961, a qual viria a falecer tragicamente a 5 de Agosto do ano seguinte. Casa-se, um ano mais tarde, com Inge Morath, a 17 de fevereiro de 1962. Conheceram-se enquanto os fotógrafos da agência Magnum documentavam a realização do filme “The Misfits”. Tiveram duas crianças, Rebecca Miller nascida em setembro de 1962 e Daniel. Rebecca casou-se com Daniel Day-Lewis em 1996. De acordo com o biógrafo Martin Gottfried, Daniel nasceu em novembro de 1966 com síndroma de Down. Miller pôs o filho à guarda de uma instituição em Roxbury, Connecticut, e nunca o visitou (ainda que a sua mulher o fizesse). Miller não fala de Daniel na sua autobiografia “Timebends”, de 1987.

Em 1985, Miller visitou a Turquia e foi homenageado na Embaixada Americana. Depois de o seu companheiro de viagem Harold Pinter ter sido expulso do país por discutir a tortura, Miller deixou o país em solidariedade para com o colega. Inge Morath morreu a 30 de janeiro de 2002. A 1 de Maio do mesmo ano, Miller venceu o prémio espanhol Príncipe Astúrias de Letras por ser, segundo os atribuidores do prémio "o mestre indiscutível do drama moderno". Entre os premiados anteriores encontravam-se, por exemplo, Doris Lessing, Günter Grass e Carlos Fuentes. Em Dezembro de 2004, com 89 anos, anunciou que pretendia casar com uma artista de trinta e quatro anos chamada Agnes Barley com quem vivia desde 2002 na sua quinta em Roxbury. A 10 de Fevereiro de 2005, Arthur Miller morre em casa de insuficiência cardíaca crónica (é também referido, nalgumas fontes, que sofria de cancro, tendo o seu estado de saúde piorado devido a uma pneumonia). Encontra-se sepultado no Cemitério Central de Roxbury, Connecticut, nos Estados Unidos.

(Post by Jota Marques)

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