Autor: Sarane Alexandrian, 1972
Tradução Adelaide Penha e Costa
Editora Verbo, 20 de Fevereiro de 1973
Desde o seu aparecimento, o Surrealismo sempre negou ser uma doutrina: em vez de ensinar um sistema, pretendeu provocar, por meio de produções e acções apropriadas, novas necessidades perante a realidade. Assim, fez nascer uma forma de sensibilidade que marcou profundamente a arte contemporânea e que permitiu uma enorme variedade de exigências e de processos criadores. Tanto os seus artistas como os seus escritores tornaram-se mestres internacionais, e a sua influência foi tão fecunda que, ao estudá-los, se tem a impressão de penetrar no âmago das principais pesquisas de vanguarda da nossa época. Ao contrário do romantismo, ao qual muitas vezes foi comparado, o Surrealismo soube estabelecer entre a linguagem plástica e a linguagem poética uma relação que não se limitou à ilustração de uma pela outra. Colocou a poesia no centro de tudo, servindo-se da arte para a tornar visível.
"O Pesadelo" (Füssli, 1782) |
Os seus pintores e escultores foram, aliás, verdadeiros poetas, que se exprimiam tão bem com as palavras como com os materiais. Arp, Picabia e Dalí escreveram poemas cheios de fantasia; Chirico, Savinio e Leonora Carrington publicaram contos insólitos. Todos eles acharam indispensável dar a cada obra um título original, para que ela fosse uma criação total de espírito. O conteúdo dos seus quadros e dos seus objectos dependeu sempre da imaginação fabuladora. Encontramos um exemplo particularmente revelador em Magritte, que, dois meses antes de morrer, nos confessava numa carta admirável: «Considero a arte de pintar a ciência de justapor as cores de tal forma que o seu aspecto efectivo desapareça e deixe transparecer uma imagem poética... Na minha pintura não há assuntos nem temas, trata-se de imaginar imagens cuja poesia restitua às coisas conhecidas o que elas têm de absolutamente desconhecido e... desconhecível.» Se a arte surrealista não foi "literária", é que considerava a poesia como o contrário da literatura e foi defendida por autores que, tal como Breton, Éluard e Aragon, eram coleccionadores experimentados que encorajavam as suas inovações técnicas.
"Os Homens não Saberão de Nada" (Ernst, 1923) |
A evolução do Surrealismo confunde-se quase inteiramente com a do seu fundador, André Breton. Embora não tenha inventado a palavra, Breton assegurou o êxito da ideia, esforçando-se constantemente por manter-lhe a pureza. Para se ser surrealista era preciso primeiro que ele conferisse o título; nunca ninguém protestou contra esta obrigação, de tal modo ela parecia evidente. Os seus manifestos, ao mesmo tempo que lhe pertenciam pelo estilo, foram a expressão da vontade que animava os seus companheiros do momento. Breton soube impor àqueles que dele se aproximaram, não só uma disciplina de acção, mas também, o que é mais notável, uma disciplina de sonho. No entanto, um artista não deixava necessàriamente de ser surrealista, na altura em que, depois de se ter comprometido nessa empresa comum, era levado a separar-se dela pela sua própria evolução. Aí adquirira para sempre princípios e estímulos que nunca teria encontrado sòzinho, pois tudo nela se destinava a alimentar um clima lírico incondicional, desde as diatribes apaixonadas, a propósito de uma leitura, aos divertimentos.
"A Persistência da Memória" (Salvador Dalí, 1931) |
A partir de 1947, eu próprio fiz parte do grupo surrealista e tive que discutir os seus problemas internos. As conversas com Breton e os contactos que tive com diversos pintores, escultores e arquitectos do movimento constituem a minha melhor fonte de informação. Para compreender os artistas surrealistas é preciso saber que todos eles consideravam a arte não como um fim em si, mas como um meio de valorizar o que de mais precioso, mais secreto e mais surpreendente há na vida. Eles não pretenderam ser nem artesãos nem estetas: apenas inspirados e jogadores. Quando visitei Picabia na sua moradia parisiense em 1949, ele mostrou-me álbuns de fotografias com recordações dos seus prazeres volvidos; orgulhava-se mais delas que dos seus quadros. Não escrevera ele outrora: «Como me é indiferente toda a pintura que fiz, desde que o espírito, que é a arte das festas, não desapareça em mim!» Esta suprema desenvoltura não poderia diminuir o alcance de uma aventura criadora, que para tantos foi trágica; apesar do seu recurso ao humor, a revolta surrealista atingiu muitas vezes o abismo do desespero. Ao abrirmo-nos às sua obras, apercebemo-nos fàcilmente de que o Surrealismo, esse produto da época, para além das dats e dos acontecimentos que o limitam, é menos uma classificação da arte que uma das forças vivas que a imaginação conserva permanentemente de reserva.
(Sarane Alexandrian in Prefácio)
"Divisibilidade Infinita" (Yves Tanguy, 1942) |
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ANDRÉ BRETON (1896-1966)
Muitos identificam a corrente artística do surrealismo como a criação do pintor Salvador Dalí. No entanto, o autor inicial desta página da história da arte foi o francês André Breton. Escritor, poeta e coleccionador de arte, foi ele o autor do Manifeste du Surréalisme, onde desenhou textualmente os contornos deste movimento e no que este realmente consistia. Para além desta actividade escrita, o gaulês contactou tanto com figuras artísticas como políticas, tais como Diego Rivera ou Leon Trotsky. Foi muito o que advogou e o que teorizou, dando o mote para que o surrealismo tomasse proporções… surreais ao nível de notoriedade. Esta é, nos dias de hoje, uma das correntes mais proeminentes no que toca à arte, tratando-se Breton de uma figura chave na preponderância assumida da mesma na atualidade.
André
Breton nasceu no norte de França a 19 de Fevereiro de 1896, mais concretamente
na Normandia, na vila de Tinchebray. Filho de pais de modestas posses mas com
preceitos católicos rigorosos, o jovem estudou medicina e psiquiatria (formação
que viria a influenciar acentuadamente as suas concepções) nos tempos
antecedentes à Primeira Guerra Mundial. Aquando do despoletar desta, o francês
trabalhou na ala neurológica de tratamento dos feridos, apesar de também ter
operado na artilharia do exército do seu país. A sua educação nunca foi alheia
à literatura e à filosofia, sendo-lhe incutido, pelos seus professores, o
apreço pelas obras de Charles Baudelaire e o contraste entre o positivismo
progressista científico e o idealismo hegeliano, assente na libertação da
consciência. A poesia tornou-se num canal de expressão subtil e natural na sua
vida, com a qual Breton entrou em contacto com nomes da camada intelectual da
sociedade de então, como Paul Valéry, Guillaume Apollinaire ou Alfred Jarry.
Ainda em contexto bélico, o gaulês contacta com indivíduos que acabam por
sucumbir a problemas mentais, vendo ele nessa loucura um estado a partir do
qual se materializaria a arte, assim como a aventura e o sonho. Todos os nomes
com os quais contactou então sustentaram uma postura de desdém com as
tendências (quase dadaísta) e que se repercutiu nos anos vindouros. Com os
amigos Louis Aragon e Philippe Soupault, produziu um livro de crítica literária
denominada Littérature (1919). Casando-se em 1921 com Simone Kahn e movendo-se
para a capital francesa em 1922, o seu apartamento na rua Fontaine tornou-se
num autêntico armazém repleto de objetos culturais, entre eles pinturas,
desenhos, esculturas, livros, fotografias, manuscritos, etc. O número destes
superava as cinco mil unidades.
Com os seus supramencionados parceiros, Breton inventou o método de escrita automática na produção de Les Champs Magnétiques (1920), em que o objectivo passava pela criação de algo totalmente novo. Foi esta postura inicial, que eventualmente teria ramificações nas obras futuras, que apresentou os primeiros passos de uma forma de escrita em que o pendor se dirigia para a riqueza linguística do texto. Esta escrita automática era feita através do conceito fulcral do surrealismo, que passava pela orientação subconsciente da criação do texto e/ou da imagem e que, por ser tão livre e espontânea, se revelava automatizada. Duas posteriores obras da sua autoria viriam a consolidar a postura surrealista, sendo estas o Manifeste du Surréalisme (1924 e 1929) e a revista La Révolution Surréaliste (1924-29). A primeira viria a definir o que se tratava o surrealismo, sendo este «o automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, tanto verbalmente tanto pela escrita tanto por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. A orientação é dada somente por este, enquanto o controlo exercido pela razão se revela ausente e as preocupações morais e estéticas se tornam inexistentes.» Neste par de manifestos, é ainda atribuído o destaque ao sonho e ao resultado da criação como a justaposição deste com a realidade em que o artista se insere, acabando por ser o metafísico a ditar as regras. A segunda exprimia essas linhas de pensamento em relação à sociedade, pelo que os contornos tomados pelas perspetivas dos autores se revelavam polémicas e incendiárias.
a bandeira da imaginação»
Lançadas as bases nas quais o surrealismo se sustentaria e com um prestígio granjeado pelo trabalho efectuado, André Breton associa-se ao partido comunista francês, seduzido pelos ditames de Karl Marx e pelas ideias arrojadas do escritor Arthur Rimbaud. As viagens efectuadas pelo coleccionador de peças de arte, subsistindo às custas das vendas que realizava com as mesmas, multiplicaram-se, destacando-se a realizada ao México em 1940. Aí, pode privar com Leon Trotsky, ilustre rosto da revolução bolchevique que o inspirou a seguir a causa socialista, e com o casal de pintores Frida Kahlo-Diego Rivera. Com este, o europeu compôs um novo manifesto designado Pour un Art Révolutionnaire Independent, apelando à completa liberdade da criação artística e ao fim dos preconceitos que as diversas perspectivas artísticas perpetuavam. Para além disso, reforçou o papel revolucionário que um produtor poderia deter através do seu trabalho e o carácter diferenciador no que toca a desnudar as vicissitudes sociais e humanas.
No alvorecer da Segunda Guerra Mundial, o teórico alistou-se no corpo médico do exército gaulês mas viu-se forçado a emigrar para os Estados Unidos da América em tempos de anexação do país por parte das forças alemãs. Nesse período, redigiu um romance intitulado Arcane 17 (1944), em que o casamento das crenças políticas, dos hábitos surrealistas, dos interesses místicos e sobrenaturais e do pendor reflexivo da sua transacta produção literária se dá numa cerimónia bastante subvalorizada, com muita simbologia à mistura. Dá-se a mescla de diversos estilos literários, com o lirismo poético e com a formalidade estrutural a estarem implícitas num trabalho onde se discorre sobre o amor, a guerra, o oculto e até o feminismo. Quanto a este último ponto, o autor profetiza uma sociedade igualitária no que toca ao género e exorta para a necessidade de esta se concretizar. No regresso, e já com a sua terceira esposa, não deixou de deter uma postura cívica activa, colocando as visões que partilhava sobre o país e o mundo no papel. Foi também no pós-Segunda Guerra Mundial que se viu próximo do anarquismo, estabelecendo pontos de convergência entre este e o seu surrealismo. Foi nesta permanente adaptação sem nunca fugir ao surreal que viveu até ao dia da sua morte, 28 de setembro de 1966.
Uma palavra e tudo está perdido»
Foi a reconquista da vida verdadeira que moveu a vida e obra de André Breton, tanto na formatura de intervenção surrealista como de poesia. No sonho, via as soluções que a consciência não lhe conseguia providenciar. No amor, identificava o reencontro do ser humano com as suas forças mais profundas e viscerais, estas que naturalmente se afirmariam numa quase materialização do sonho. Uma das problemáticas do seu raciocínio passa por responder assertivamente à crença na telepatia, na premonição e no acaso. O autor suga a perspetiva mística que lhe poderia estar subjacente e delimita este rol de conceitos ao materialismo e ao poder decifrador do homem. Numa vertente discursiva, o humor negro é um detalhe recorrente na práctica surrealista, evidenciando os paradoxos do mundo e da sociedade e denunciando as antíteses que tanto lhe apoquentavam de forma sarcástica e corrosiva. Neste ponto, enquadra-se a preocupação de Breton com a assunção dos conceitos idealistas e dualistas pela parte do ser humano, de forma a que o mesmo se consiga reconciliar com o mundo e para que atenue a densidade de contradições. Pela sombra do surreal caminha André Breton, o seu principal teórico e caracterizador. Tal como a história possui o historiador e como a ciência possui o cientista, o surrealismo possui o surreal. Enquanto que as raízes do conceito de historiador e de cientista remontam ao desconhecido, as de surreal residem neste teórico francês. Fez das estrofes sonhos e dos manifestos as insurreições dos mesmos. Sem André Breton, não existiria uma das correntes artísticas mais relevantes no século XX. Sem André Breton, o sonho estaria ainda adormecido e perduraria ainda o velho paradigma em que o rigor e a certeza prevaleciam. Sem André Breton, poucas vias encontraríamos para dar um saltinho ao que há de surreal em nós. Na forma do amor mais puro e rarefeito e do sonho mais inocente e aventureiro se produziu a obra do subconsciente e o tubo de escape a uma realidade sempre exposta a ajustes e críticas. De forma surreal mas com muito de real, André Breton surgiu como o homem ideal para da arte fazer ponto cardeal.
«Passarei a minha vida a provocar as confidências dos loucos. São pessoas de uma honestidade escrupulosa e cuja inocência só encontra um igual em mim»
Artigo: Luke Brandão (Comunidade Cultura e Arte)
(Post
by Jota Marques)
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