Em 1920, depois de um período em França, a família fixa-se em Berlim, onde o pai de Nabokov é assassinado por dois russos de extrema-direita. Em 1925 casa-se com Véra Slonim e começa a escrever o seu primeiro romance, "Maschenka", a que se segue "Glória". No início da II Guerra Mundial, preocupado com as perseguições que a mulher, de origem judaica, poderia sofrer, Nabokov parte para os Estados Unidos da América, adquirindo a nacionalidade americana em 1945. Começa a escrever em inglês, mantendo, nas obras deste período, o fundo fantástico, a visão irónica da vida quotidiana e a mestria formal que já havia demonstrado, almejando levar a cabo um retrato da sociedade norte-americana através das suas convenções culturais e posturas perante o sexo. São dignas de nota as narrativas: "Invitation to a Beheading", "The Real Life of Sebastian Knight", "Lolita", um grande êxito editorial transposto para o cinema por Stanley Kubrick e cujo argumento se baseia nos amores de um homem adulto por uma adolescente ou "Speak Memory". Nabokov adaptou-se o melhor possível aos EUA, tendo chegado a declarar que se sentia «tão americano como o mês de Abril no Arizona.» É com "Lolita", quando já tinha 56 anos, que a sua notoriedade é finalmente reconhecida, devido ao escândalo que o romance despoleta nos EUA e também na Europa. O livro havia sido salvo num dia de 1950 pela mulher Véra, quando Nabokov pretendeu queimar os primeiros capítulos, incapaz de resolver algumas dificuldades técnicas. Conforme refere Ana Filipa Rodrigues, «Nabokov conseguiu criar uma obra em que na mesma frase nos consegue repudiar e maravilhar com o que estamos a ler. Com uma escrita magnífica, como só os grandes escritores conseguem alcançar conhecemos Humbert e a sua ninfeta Lolita. Com um o tema tão sensível, Nabokov criou um clássico intemporal de desejos ocultos e proibidos, de personalidades fortes (como a da Lolita) e fracas (como a de Humbert) de vidas disfarçadas de normalidade, um livro que queremos desistir ao fim do primeiro capitulo, mas que nos agarra até ao ultimo, um livro que se torna uma luta interior para o leitor. "Lo-Li-Ta. Era Lo, só Lo, pela manhã, com seu metro e quarenta e sete e uma só peúga. Era Lola de calças, Dolly na escola. Era Dolores no tracejado onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita.» Em 1961, já famoso, Nabokov regressa com a família à Europa, tendo-se instalado na Suiça, em Montreux, no Palace Hotel, numa série de quartos que comunicavam entre si, e onde tudo tinha um carácter provisório. Não mais abandonaria a cidade, vindo a falecer em Junho de 1977.
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Na introdução ao livro, por John Ray Junior, doutor em Filosofia, refere-se: «Considerado simplesmente como romance, "Lolita" trata de situações e emoções que permaneceriam irritantemente vagas para o leitor se a sua expressão se tivesse estiolado pelo recurso a evasivas banais. É verdade que não se encontra em todo o livro um único termo obsceno, de tal sorte que o robusto filisteu, condicionado pelas modernas convenções a aceitar sem repugnância a prodigalidade de palavras porcas de um romance banal, ficará absolutamente escandalizado com a sua ausência aqui. Se, no entanto, para tranquilidade da consciência desse paradoxal moralista, se tentasse diluir ou omitir cenas a que um certo tipo de mentalidade poderia chamar "afrodisíacas", o melhor seria desistir por completo da publicação de "Lolita", pois as cenas que absurdamente se poderiam acoimar de prenhes de conteúdo sensual próprio são o mais estritamente funcionais possível no desenrolar de uma história trágica que se encaminha, inabalável e resolutamente, para nada menos do que uma apoteose moral. Os cínicos poderão dizer que a pornografia comercial afirma exactamente o mesmo e os entendidos poderão ripostar que a apaixonada confissão que Humbert Humbert descreve com tanto desespero, e que, se o nosso dementado diarista tivesse, no fatal Verão de 1947, consultado um psicoterapeuta competente, não haveria tragédia nenhuma - mas, nesse caso, também não haveria este livro.»
O FILME DE STANLEY KUBRICK (1962)
But I guess that's just the way things are»
Apresentado pela primeira vez no Festival de Veneza de 1962 (onde concorreu ao Leão de Ouro), “Lolita” começou por não atraír o grande público, devido sobretudo ao inevitável paralelo entre o filme e o livro, comparação sem grande significado que no entanto perdura até aos nossos dias. Tendo em conta o global desinteresse fílmico de Kubrick pelos problemas da sentimentalidade amorosa, é bastante evidente e significativo o motivo da escolha: o romance de Nabokov desenvolve com ofuscante clareza aquele que é o tema dos temas kubrickiano, aquele a partir do qual se produzem todos os seus filmes: a obsessão. O facto de Kubrick apostar muito mais no lado subjectivo dessa obsessão, por oposição ao seu objecto físico, ou seja, ao corpo adolescente de Lolita (Sue Lyon) evidencia já o afastamento do conteúdo do romance, enquadrando-se todo o filme numa atmosfera onírica, onde a subtileza é a nota dominante das relações entre Humbert (James Mason, num dos grandes papeis da sua carreira) e as pessoas à sua volta. A relação “normal” entre homem e mulher sempre primou pela ausência no cinema de Kubrick, e esta “Lolita” é um bom exemplo disso. A paixão de Humbert situa-se num plano acima do erotismo e da permissividade, indiferente à idade da “ninfa”, e enquadrando-se num desvio à norma social institucionalizada. É uma espécie de agonia amorosa (que faz lembrar o “Amor-Louco” de Breton), uma exaltação profundamente maior do que aquela que a imaginação pode criar.
Magistralmente interpretada por Shelley Winters, Charlotte Haze, a mãe de Lolita, é o polo atractivo de toda a aversão de Humbert pelos estereotipos presentes no modo de vida americano dos anos 50. Mas enquanto Nabokov não vai além de um certo sarcasmo no modo como descreve essa sociedade, Kubrick apodera-se da figura de Charlotte (e de todos os preconceitos pequeno-burgueses que ela representa) para dar mais ênfase ao tormento de Humbert. Será nesse ambiente de desejos recalcados que o professor se deixará subjugar pela jovem teenager, iniciando o percurso sem retorno que o conduzirá à solidão e à mais negra decrepitude moral. Já as diversas máscaras de Clare Quilty (espantoso Peter Sellers) estão inteiramente na órbita do imaginário repressivo-depressivo de Humbert. As múltiplas aparições de Sellers-Quilty são física e verbalmente grotescas, espelhando toda a culpabilidade de Humbert, e conferindo o peso da realidade e uma dimensão concreta ao delírio da perseguição de que Humbert é vítima. Digamos, para simplificar, que Quilty representa o lado transgressor de Humbert, a materialização dos seus mais secretos desejos.
Uma das razões de Kubrick ter escolhido Sue Lyon (de entre cerca de 800 candidatas) teve a ver com o tamanho dos seios da jovem actriz, para evitar que a personagem denotasse a pouca idade com que Nabokov a descrevera no livro (12 anos). Além disso, Kubrick teve o cuidado de acrescentar dois anos à sua Lolita (Sue Lyon também tinha a mesma idade - 14 anos - na altura da rodagem), de modo a aproximá-la mais da adolescência e evitar ao máximo a conotação do filme com o universo pedófilo (estigma do qual no entanto não se viria a livrar). O filme de Kubrick é considerado ainda hoje como um objecto estranho na sua filmografia. Mas só poderá estar convicto dessa opinião quem passar por “Lolita” apenas um olhar apressado e superficial. Na verdade, todos os temas caros ao realizador estão já contidos nesta adaptação da obra de Nabokov. O argumento, da autoria do próprio escritor, mas substancialmente alterado por Kubrick (sobretudo no carácter de Peter Sellers, Clare Quilty, que no livro não tem a importância central com que aparece no filme, até a própria Lolita passou de morena a loura) viria a ser nomeado para o Oscar da Academia, mas seriam os Globos de Ouro a perspectivarem o essencial do filme, ao fazerem recaír quatro nomeações sobre o realizador e os três actores (Mason, Winters e Sellers) que foram os principais responsáveis pela envergadura e longevidade da obra.
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