sexta-feira, 14 de outubro de 2022

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA: "CONTOS DO GIN-TONIC" (1973)

 Escritor e pintor português, nasceu a 2 de Janeiro de 1923, em Lisboa, e morreu a 9 de Janeiro de 1980, em Cascais. Frequentou a Escola de Belas-Artes - de onde seria expulso em 1942 - e participou, entre 1949 e 1951, nas atividades da movimentação surrealista em Portugal (colaborou na exposição de 1949 e assinou alguns dos textos colectivos, como "Afixação Proibida") tendo aderido ao Grupo Surrealista Dissidente. Depois começou a andar de um lado para o outro: exerceu várias profissões (marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico e da construção civil, etc.) e viveu grande parte da sua vida no estrangeiro (Europa Ocidental, Norte de África, Médio Oriente, e até, dizem, os países socialistas). Não ia aos Balcãs porque tinha medo, todos lhe diziam que lá os bigodes eram enormes e as bombas estoiravam até mo bolso. Um dia teve que passar por lá. Os bigodes eram realmente grandes, mas toda a gente sabia rir. Tirou o casaco e bebeu que se fartou. Em 1958 meteram-se-lhe ideias na cabeça e foi até Inglaterra, para aprender coisas. Não aprendeu e voltou. Entre 1959 e 1961 foi casado e não fez mais nada. Alguns textos seus, escritos em colaboração, foram recolhidos na "Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito" (1961), organizada por Mário Cesariny. Instalou-se no Brasil onde desenvolveu várias atividades, como a de encenador e de director literário da Editora Samambaia. 

Regressou a Portugal em 1970. Colaborou, com pequenos contos, no suplemento "Fim-de-Semana", do jornal República e no semanário humorístico, "Pé de Cabra". Em 1973 edita o seu primeiro livro "Contos do Gin-Tonic", primeiro de vários volumes que reúnem pequenas narrativas de um nonsense truculento, onde ainda é visível a influência do legado surrealista. Chefiou a redacção de "O Coiso", semanário impresso nas oficinas do República, durante 13 semanas, em 1975. Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado em 1976 e nesse mesmo ano dirige a revista "Aqui", ao mesmo tempo que realiza várias traduções (Faulkner, Aldous Huxley, Gorki). Posteriormente editaria "Novos Contos do Gin-Tonic" (1974), "Imagem Devolvida" (1974), "Um Conto de Natal para Crianças" (1975), "Casos de Direito Galáctico" (1975), "O Mundo Inquietante de Josefa" (fragmentos) (1975) e "Lisboa ao Voo do Pássaro" (1979). Os últimos anos da sua vida foram muito difíceis, tolhido pela doença (degenerescência óssea) e afligido pela pobreza, vivendo na casa materna, com a mãe e uma tia, muito idosas. Viria a morrer com apenas 57 anos. Grande parte da obra poética dispersa e inédita de Mário-Henrique Leiria, nomeadamente aquela que resultou da sua actividade surrealista, foi publicada postumamente, encontrando-se o seu espólio depositado na Biblioteca Nacional.


SURPRESAS DA PESCA

Não tinha dado nada.

Preparava-me para voltar para casa, mas resolvi atirar a linha uma última vez.

Senti um esticão bem forte. Segurei firme e comecei a enrolar o carreto com cuidado, devagar. E não é que vejo vir um nazi no anzol! Um nazi bem bom, dos grandes! Fiquei admiradíssimo, tinham-me dito que já não havia. Tratei de o tirar com o auxílio do camaroeiro e fui verificar imediatamente. Era mesmo. General e SS, calculem! Com boné, medalhas, suástica e tudo. Vá lá uma pessoa acreditar no que lhe dizem! Meti-o logo numa lata, enquanto estava fresco, e despachei-o para a Peixaria Nacional. Lá devem saber o que fazer com ele. A mim, francamente, não me serve para nada.


Mário-Henrique Leiria in “Contos do Gin-Tonic”
Editorial Estampa, 1973

(Post by Jota Marques)

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