quarta-feira, 26 de outubro de 2022

GRABATO DIAS ~ ODES DIDÁCTICAS

António Quadros (Viseu, 1933 - Santiago de Besteiros, 1994) estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, e gravura e pintura a fresco em Paris. Em 1964 parte para Lourenço Marques. Foi pintor e professor, mas também artista gráfico, ilustrador, ceramista, escultor, fotógrafo, cenógrafo e pedagogo. Trabalhou em arquitectura, apicultura, comunicação, biologia e ecologia, privilegiando uma abordagem interdisciplinar. Escreveu e publicou poesia sob diferentes pseudónimos: João Pedro Grabato Dias, com "40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada" (1970), "O Morto" (1971), "A Arca" (1971), "21 Laurentinas" (1971), "Pressaga" (1974), "Facto/Fado" (1986), "O Povo É Nós" (1991) e "Sagapress" (1992); Frey Ioannes Garabatus, com o poema épico-paródico "As Quybyrycas" (1972, prefácio de Jorge de Sena); Mutimati Barnabé João, ficcionado guerrilheiro morto em combate, com os poemas "Eu, o Povo" (1975). Coordenou, com Rui Knopfli, os cadernos de poesia Caliban. Regressa a Portugal em 1984, e lecciona na Universidade do Algarve e na Faculdade de Arquitectura do Porto, continuando a pintar e a escrever. Uma parte da sua obra plástica está antologiada no livro "O Sinaleiro das Pombas" (2001).

«Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada.» Assim definiu Eugénio Lisboa o tom do livro de estreia de João Pedro Grabato Dias, publicado em Lourenço Marques em 1970. Mas se "40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada" deu a conhecer uma poesia verbalmente maximalista, inventiva e cáustica, os títulos seguintes (três deles surgidos logo em 1971) oferecem-nos uma imagem mais diversa e versátil: a gravidade atónita de "O Morto", o fôlego cosmogónico de "A Arca", a crónica dos trópicos de "21 Laurentinas", o presságio do estertor imperial em "Pressaga". Depois veio a independência de Moçambique, um veemente «acabou-se, adeus, xau, já lá vai» e uma afirmação analítico-pedagógica, brechtiana, a que se seguiram as inevitáveis decepções com o «estrabismo convergente da fraternidade divergente». E mesmo quando, de volta a Portugal, o poeta assumiu uma faceta mais lírica, mergulhando na infância e na identidade, regressavam sempre os «áfricos remorsos», a terra que amou, a condição de ter duas pátrias ou nenhuma, a incerta mas necessária crença nos factos contra os fados. "Odes Didácticas" é a primeira antologia desse discurso e desse colosso. (Pedro Mexia)

A par da sua obra pictórica, António Quadros criou uma ficção absoluta, um poeta que refez o mundo a partir do ouvido e, sem ceder à música, produziu óperas cheias de tumulto e inquietação. Nesta época em que, por regra, nada escapa aos terríveis inventários, a essa forma de atenção que esvazia e assemelha tudo, aos trabalhos dessa corja de glosadores, essas máquinas de ler, que misturam as coisas melhores com os embustes genéricos, que apanham e afinam um registo sensível ainda que estéril, face à competência mortífera desses guias de museu, é fácil de entender uma certa tentação da obscuridade. Mas, como escreveu Winnicott, se é um prazer estar escondido, é um desastre não se ser encontrado. Ora, como se sabe, “o silêncio decanta,/ evidencia o gesto menor”, e é difícil esconder por muito tempo, e mesmo que seja com fins misericordiosos, certos mortos, nomeadamente para que os vivos não se sintam desencorajados nesse ufano registo dos que reivindicam ser agora a sua vez.


   Devo velar os meus mortos.

   Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los.

   Estar atento nas franjas do silêncio.

   Alguma coisa deve acontecer

   na espera. Alguma coisa, de algum modo

   virá aclarar-se. O silêncio decanta,

   evidencia o gesto menor, a amargura sem pausa

   o ganga das lágrimas... O silêncio é na verdade puro

   quando lhe damos um fundo irremediável.

 

   Nascemos nos limites do reino da morte

   com suas pompas, sua hierarquia, seus hábitos.

   Deslizamos sem cessar nas entranhas desejáveis

   e os predestinados, esses sim, vão, voam, adiantam-se

   são belíssimos, têm o sangue dourado,

   e, na verdade, são já os nossos mortos.



Continuamos a ouvir falar muito da morte como as crianças que pedem que a luz do corredor fique acesa e a porta do quarto aberta, talvez por receio de falhar o salto entre a luz deste lado e aquela que se repercute nos sonhos, como se um degrau em falta pudesse ser o suficiente para que fossem engolidas pelo escuro. Mas essa morte já sem sujeitos é apenas outro sinal de paranóia, esses delírios que se afogam em suores frios depois de esgotadas as tristezas prudentes e o catálogo das mais banais crises nervosas. Isso são os infernos desses protagonistas que nos fazem “pensar num herói dostoievskiano que tivesse conta no banco” (Cioran). E alguns têm-nas até com somas bem chorudas. A verdadeira decepção é outra coisa, mas para se chegar à poesia não vale a pena roçar de leve o desespero. Não basta à poesia a firmeza de ter a razão do seu lado, mas representá-la de tal modo que esta seja condenada à clandestinidade. É nessa clandestinidade que vamos encontrar hoje, de novo, um poeta como Grabato Dias, mesmo que recuperado agora com aquele requinte dos mortos que estiveram a apurar como vinhos de reserva.


   Dai ao morto o espaço que merece, na memória.

   Nunca no coração porque ele toma-o todo.

   (... as flores de plástico não são talvez as mais belas

   mas são por certo mais inocentes e duráveis...)

   Dai ao morto o espaço que pretende.

   Ele flanca os marcos na nossa estima

   e é conveniente não desapontá-lo.

   Qualquer pequeno gesto é já o ritual esperado.

   Toca a embarcar o rebanho das memórias

   a emparelhar toda a emoção diversa

   a acasalar as antigas intenções nunca expressas

   na grande arca, que, salva ao dilúvio das lágrimas

   há-de pairar, parar, poisar, logo, amanhã, depois

   quando o luto real começar.


A poesia surge-nos aqui como a linguagem sujeita a uma função crítica, uma absorção radiante na crise de si, que se espelha com uma simetria fascinante nessas sombras verbais que às vezes parecem capazes de golpes de insurreição passando a ser elas a iluminar o percurso. Grabato Dias experimenta com a linguagem comum, aproveita dos seus frémitos e solavancos um sentido que escapa a um ouvido que se habituou excessivamente ao idioma e lhe perdeu essa indagação oculta, treina-se também nos colóquios de pássaros, vem e volta da infância, mas marcado, dolorido, não por desfastio como quem lança pedras a janelas já partidas por outros muito antes. Fala também a língua da intimidade, ainda que o faça com uma desenvoltura altissonante, e dessa confabulação de um discurso íntimo emergem as memórias num encadeamento poderoso e tocante que elevando-as a uma mitologia privada. Há aqui um esforço de fazer o levantamento da vida por trás das ideias, e também de trazer a vida ao seu ponto de partida.


   Sou vivo há muito tempo e deste modo

   recordo a minha infância como se

   de outro fora, tal nitidez

   absoluta como que a revivo.

   Cada passada imagem se sucede

   a uma outra e o todo flui, móvel,

   ante este mim que assiste no portal

   dum mundo recolhido em si, e penso

   nesse eu outro como em filho anterior

   sobre quem sempre adiei feroz tutela.


Sendo uma poesia cheia de recursos, não comunga nos gerais exercícios da intelectualidade, nessa distância ou clareza do que se submete aos rigores da busca do sublime, evitando sujar-se demasiado com coisas terrenas. Não participa de nenhum modo no “embuste do estilo” que tomou conta de grande parte da poesia que vamos vendo fazer as rondas. A esse embuste como o descreve Cioran: “dar às tristezas habituais um aspecto insólito, embelezar pequenas infelicidades, adornar o vazio, existir pela palavra, pela fraseologia do suspiro ou do sarcasmo.” Pelo contrário, Grabato Dias empenha-se, deixa-se todo no prego, volta depois, paga o que for preciso para se reaver, busca-se da virtude mais hiante aos desvãos mais inconfessáveis de si, tudo por um conhecimento sem antecedentes, profundo, numa forma capaz das mais drásticas variações, tudo para lançar a rede e capturar esse monstro, a consciência e as suas sombras, o seu corpo, o seu milagre, a sua dor.


   Que o grito seja só êxtase, e não

   incruenta delícia do agente

   sobre o amargo não do desfrutado.

   No horror duma posse não querida

   e consentida só, por impotência

   de músculos mais brandos, está um horror

   da ausência duma nobre e pura dádiva

   que não chega a doar-se e tanto dói

   por tal. Amor é tempo consentido

   fora do tempo, e não, jamais, medido.


“Instintivamente, instantaneamente”, o estilo de Grabato Dias é melhor descrito como uma energia, uma forma de propulsão do pensamento, das sensações, uma espécie de memória que tudo traga (“A memória é uma transparência em planos”), um modo de consciência que se eleva pondo em rotação as hélices da imaginação. Essa energia incansável chega a ser descuidada, abrupta, redundante, agarra o sentido de todas as maneiras, disputa-o numa refrega interior, consegue arrastá-lo e dar-lhe a maior sova, e depois ocupar-se a polir pormenores. É uma poesia com a melhor maquinaria da prosa, é tempestuosa, cheia de virtude e dada a indulgências no que toca a assonâncias e aliterações. Gosta de impor dificuldades ao leitor, extenuar e ameaçá-lo, para o seduzir de novo quando se tinha dado como perdido.


   Poderemos então ser simples como

   as leis do universo, simples como

   o nascer e viver e o morrer

   simples como sempre o desejamos

   simples como um esperma derramado

   dentro ainda da órbita do desejo

   simples como um fruto consumido

   no perímetro da sede, ou denso mosto

   ingurgitado num tempo de riso

   logo após o desejo e aquém do tédio.



António Augusto Melo Lucena Quadros soube livrar-se do aspecto encenado, do rigor funesto, daquela “mística das vésperas”, soube trazer o humor como espingarda podre ao ombro, e foi um “multímodo mulato do argumento”, esse sim um triunfo, e desdobrou-se de acordo com a necessidade que teve, para não misturar demasiado coisas que tinha rodando em si, mas que eram tudo menos “cavalinhos de carrosséis”. Para os versos havia João Pedro Grabato Dias ou Frei Ioannes Garabatus, fez também uma aparição enquanto Multimati Barnabé João, depois havia o pintor que se assinava António Quadros, entre outras presenças que para darem de si o melhor podiam dispensar formalidades. Assim, foi artista gráfico e pedagogo, apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e descobridor da Rosa Ramalho. Isto segundo a biografia que nos serve António Cabrita, que também dá a entender esse cuidado em fazer repartições servindo-se de diferentes nomes, pois “este país é tão pobre que não dá para fazer-se duas ideias acerca da mesma pessoa”. A frase é de Camilo José Cela, sobre o seu país, bem maior que o nosso, e Cabrita recupera-a com maior proveito face às nossas dimensões geográficas e sobretudo mentais no início do longuíssimo posfácio, cheio de verve, e que em grande medida recupera um ensaio exemplar com o qual tentava há anos chamar a atenção para esta obra esplendorosa de um poeta imenso que se sabia condenado a voar em “insectos sonoros” e vir pousar-nos nalgum ponto da consciência, não para beber uma gota do nosso sangue meio coalhado, mas para deixar nele uma gota do seu sangue dourado, actuando como um vírus, num silêncio decantado que nos arrebata e transcende. (ionline)

MÁRTIRMONIAL,

MATRIARMORIAL,

MATRIHORMONAL

 

   Cavalheiro distinto, e modesto,

   com alguma cultura, em pousio,

   de boagnífica família e lavradio

   passável, lutador ambidextro

 

   com ursos superiores, bastante lesto

   nas também duas pernas, de assobio

   em coisas musicais e sem fastio

   ou outro desarranjo; ainda intesto

 

   por falta de vagares ou vícios; vivo

   em jogos de sala e outro desporto

   procura jovem fêmea com lascivo

 

   andar, dotada quanto a dote e a dotes

   glúteas nalgas de alevantar um morto

   e, se possível, algo que decote.


(Post by Jota Marques)

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