«Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada.» Assim definiu Eugénio Lisboa o tom do livro de estreia de João Pedro Grabato Dias, publicado em Lourenço Marques em 1970. Mas se "40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada" deu a conhecer uma poesia verbalmente maximalista, inventiva e cáustica, os títulos seguintes (três deles surgidos logo em 1971) oferecem-nos uma imagem mais diversa e versátil: a gravidade atónita de "O Morto", o fôlego cosmogónico de "A Arca", a crónica dos trópicos de "21 Laurentinas", o presságio do estertor imperial em "Pressaga". Depois veio a independência de Moçambique, um veemente «acabou-se, adeus, xau, já lá vai» e uma afirmação analítico-pedagógica, brechtiana, a que se seguiram as inevitáveis decepções com o «estrabismo convergente da fraternidade divergente». E mesmo quando, de volta a Portugal, o poeta assumiu uma faceta mais lírica, mergulhando na infância e na identidade, regressavam sempre os «áfricos remorsos», a terra que amou, a condição de ter duas pátrias ou nenhuma, a incerta mas necessária crença nos factos contra os fados. "Odes Didácticas" é a primeira antologia desse discurso e desse colosso. (Pedro Mexia)
A par da sua obra
pictórica, António Quadros criou uma ficção absoluta, um poeta que refez o
mundo a partir do ouvido e, sem ceder à música, produziu óperas cheias de
tumulto e inquietação. Nesta época em que, por regra, nada escapa aos terríveis
inventários, a essa forma de atenção que esvazia e assemelha tudo, aos
trabalhos dessa corja de glosadores, essas máquinas de ler, que misturam as
coisas melhores com os embustes genéricos, que apanham e afinam um registo
sensível ainda que estéril, face à competência mortífera desses guias de museu,
é fácil de entender uma certa tentação da obscuridade. Mas, como escreveu
Winnicott, se é um prazer estar escondido, é um desastre não se ser encontrado.
Ora, como se sabe, “o silêncio decanta,/ evidencia o gesto menor”, e é difícil
esconder por muito tempo, e mesmo que seja com fins misericordiosos, certos
mortos, nomeadamente para que os vivos não se sintam desencorajados nesse ufano
registo dos que reivindicam ser agora a sua vez.
Devo velar os meus mortos.
Vigiá-los, com doçura, mas
vigiá-los.
Estar atento nas franjas
do silêncio.
Alguma coisa deve
acontecer
na espera. Alguma coisa,
de algum modo
virá aclarar-se. O silêncio
decanta,
evidencia o gesto menor, a
amargura sem pausa
o ganga das lágrimas... O
silêncio é na verdade puro
quando lhe damos um fundo
irremediável.
Nascemos nos limites do
reino da morte
com suas pompas, sua
hierarquia, seus hábitos.
Deslizamos sem cessar nas
entranhas desejáveis
e os predestinados, esses
sim, vão, voam, adiantam-se
são belíssimos, têm o
sangue dourado,
e, na verdade, são já os
nossos mortos.
Continuamos a ouvir falar
muito da morte como as crianças que pedem que a luz do corredor fique acesa e a
porta do quarto aberta, talvez por receio de falhar o salto entre a luz deste
lado e aquela que se repercute nos sonhos, como se um degrau em falta pudesse
ser o suficiente para que fossem engolidas pelo escuro. Mas essa morte já sem
sujeitos é apenas outro sinal de paranóia, esses delírios que se afogam em
suores frios depois de esgotadas as tristezas prudentes e o catálogo das mais
banais crises nervosas. Isso são os infernos desses protagonistas que nos fazem
“pensar num herói dostoievskiano que tivesse conta no banco” (Cioran). E alguns
têm-nas até com somas bem chorudas. A verdadeira decepção é outra coisa, mas
para se chegar à poesia não vale a pena roçar de leve o desespero. Não basta à
poesia a firmeza de ter a razão do seu lado, mas representá-la de tal modo que
esta seja condenada à clandestinidade. É nessa clandestinidade que vamos
encontrar hoje, de novo, um poeta como Grabato Dias, mesmo que recuperado agora
com aquele requinte dos mortos que estiveram a apurar como vinhos de reserva.
Dai ao morto o espaço que
merece, na memória.
Nunca no coração porque
ele toma-o todo.
(... as flores de plástico
não são talvez as mais belas
mas são por certo mais
inocentes e duráveis...)
Dai ao morto o espaço que
pretende.
Ele flanca os marcos na
nossa estima
e é conveniente não
desapontá-lo.
Qualquer pequeno gesto é já
o ritual esperado.
Toca a embarcar o rebanho
das memórias
a emparelhar toda a emoção
diversa
a acasalar as antigas
intenções nunca expressas
na grande arca, que, salva
ao dilúvio das lágrimas
há-de pairar, parar,
poisar, logo, amanhã, depois
quando o luto real
começar.
A poesia surge-nos aqui
como a linguagem sujeita a uma função crítica, uma absorção radiante na crise
de si, que se espelha com uma simetria fascinante nessas sombras verbais que às
vezes parecem capazes de golpes de insurreição passando a ser elas a iluminar o
percurso. Grabato Dias experimenta com a linguagem comum, aproveita dos seus frémitos
e solavancos um sentido que escapa a um ouvido que se habituou excessivamente
ao idioma e lhe perdeu essa indagação oculta, treina-se também nos colóquios de
pássaros, vem e volta da infância, mas marcado, dolorido, não por desfastio
como quem lança pedras a janelas já partidas por outros muito antes. Fala
também a língua da intimidade, ainda que o faça com uma desenvoltura
altissonante, e dessa confabulação de um discurso íntimo emergem as memórias
num encadeamento poderoso e tocante que elevando-as a uma mitologia privada. Há
aqui um esforço de fazer o levantamento da vida por trás das ideias, e também
de trazer a vida ao seu ponto de partida.
Sou vivo há muito tempo e
deste modo
recordo a minha infância
como se
de outro fora, tal nitidez
absoluta como que a
revivo.
Cada passada imagem se
sucede
a uma outra e o todo flui,
móvel,
ante este mim que assiste
no portal
dum mundo recolhido em si,
e penso
nesse eu outro como em
filho anterior
sobre quem sempre adiei feroz tutela.
Sendo uma poesia cheia de
recursos, não comunga nos gerais exercícios da intelectualidade, nessa
distância ou clareza do que se submete aos rigores da busca do sublime,
evitando sujar-se demasiado com coisas terrenas. Não participa de nenhum modo
no “embuste do estilo” que tomou conta de grande parte da poesia que vamos
vendo fazer as rondas. A esse embuste como o descreve Cioran: “dar às tristezas
habituais um aspecto insólito, embelezar pequenas infelicidades, adornar o
vazio, existir pela palavra, pela fraseologia do suspiro ou do sarcasmo.” Pelo
contrário, Grabato Dias empenha-se, deixa-se todo no prego, volta depois, paga
o que for preciso para se reaver, busca-se da virtude mais hiante aos desvãos
mais inconfessáveis de si, tudo por um conhecimento sem antecedentes, profundo,
numa forma capaz das mais drásticas variações, tudo para lançar a rede e
capturar esse monstro, a consciência e as suas sombras, o seu corpo, o seu
milagre, a sua dor.
Que o grito seja só êxtase,
e não
incruenta delícia do
agente
sobre o amargo não do
desfrutado.
No horror duma posse não
querida
e consentida só, por impotência
de músculos mais brandos,
está um horror
da ausência duma nobre e
pura dádiva
que não chega a doar-se e
tanto dói
por tal. Amor é tempo
consentido
fora do tempo, e não,
jamais, medido.
“Instintivamente,
instantaneamente”, o estilo de Grabato Dias é melhor descrito como uma energia,
uma forma de propulsão do pensamento, das sensações, uma espécie de memória que
tudo traga (“A memória é uma transparência em planos”), um modo de consciência
que se eleva pondo em rotação as hélices da imaginação. Essa energia incansável
chega a ser descuidada, abrupta, redundante, agarra o sentido de todas as
maneiras, disputa-o numa refrega interior, consegue arrastá-lo e dar-lhe a
maior sova, e depois ocupar-se a polir pormenores. É uma poesia com a melhor
maquinaria da prosa, é tempestuosa, cheia de virtude e dada a indulgências no
que toca a assonâncias e aliterações. Gosta de impor dificuldades ao leitor,
extenuar e ameaçá-lo, para o seduzir de novo quando se tinha dado como perdido.
Poderemos então ser
simples como
as leis do universo,
simples como
o nascer e viver e o
morrer
simples como sempre o
desejamos
simples como um esperma
derramado
dentro ainda da órbita do
desejo
simples como um fruto
consumido
no perímetro da sede, ou
denso mosto
ingurgitado num tempo de
riso
logo após o desejo e aquém
do tédio.
António Augusto Melo Lucena Quadros soube livrar-se do aspecto encenado, do rigor funesto, daquela “mística das vésperas”, soube trazer o humor como espingarda podre ao ombro, e foi um “multímodo mulato do argumento”, esse sim um triunfo, e desdobrou-se de acordo com a necessidade que teve, para não misturar demasiado coisas que tinha rodando em si, mas que eram tudo menos “cavalinhos de carrosséis”. Para os versos havia João Pedro Grabato Dias ou Frei Ioannes Garabatus, fez também uma aparição enquanto Multimati Barnabé João, depois havia o pintor que se assinava António Quadros, entre outras presenças que para darem de si o melhor podiam dispensar formalidades. Assim, foi artista gráfico e pedagogo, apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e descobridor da Rosa Ramalho. Isto segundo a biografia que nos serve António Cabrita, que também dá a entender esse cuidado em fazer repartições servindo-se de diferentes nomes, pois “este país é tão pobre que não dá para fazer-se duas ideias acerca da mesma pessoa”. A frase é de Camilo José Cela, sobre o seu país, bem maior que o nosso, e Cabrita recupera-a com maior proveito face às nossas dimensões geográficas e sobretudo mentais no início do longuíssimo posfácio, cheio de verve, e que em grande medida recupera um ensaio exemplar com o qual tentava há anos chamar a atenção para esta obra esplendorosa de um poeta imenso que se sabia condenado a voar em “insectos sonoros” e vir pousar-nos nalgum ponto da consciência, não para beber uma gota do nosso sangue meio coalhado, mas para deixar nele uma gota do seu sangue dourado, actuando como um vírus, num silêncio decantado que nos arrebata e transcende. (ionline)
MÁRTIRMONIAL,
MATRIARMORIAL,
MATRIHORMONAL
Cavalheiro distinto, e
modesto,
com alguma cultura, em
pousio,
de boagnífica família e
lavradio
passável, lutador
ambidextro
com ursos superiores,
bastante lesto
nas também duas pernas, de
assobio
em coisas musicais e sem
fastio
ou outro desarranjo; ainda
intesto
por falta de vagares ou vícios;
vivo
em jogos de sala e outro
desporto
procura jovem fêmea com
lascivo
andar, dotada quanto a
dote e a dotes
glúteas nalgas de
alevantar um morto
e, se possível, algo que
decote.
(Post by Jota Marques)
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